Escrúpulo: O triunfo da morte

Àqueles que ainda não leram o livro do escritor uruguaio Mario Benedetti chamado “Gracias por el fuego”, sugiro que o façam. Entre tantas passagens interessantes, contextualizado em um enredo sombrio e instigante (o parricídio, a culpa e a pusilanimidade do homem comum – tema semelhante a “Crime e Castigo” de Dostoievski), o livro propõe, em um de seus trechos, uma reflexão do escrúpulo como triunfo da morte. Já próximo de seu final, em um diálogo entre o personagem principal (Ramon) e sua cunhada (Dolores), quando ambos admitem a possibilidade de uma relação sexual entre eles, essa discussão acerca do escrúpulo e da morte é colocada.

O pensamento defendido pelo autor, através de suas personagens, é de que em nome de uma moral que não nos pertence, em nome de escrúpulos incutidos em nossos valores cristãos e burgueses, deixamos de viver um sem número de possibilidades, deixamos de gozar um sem números de gozo. Isso é bem retratado em uma fala de Dolores : “Vi que a morte está sempre se vingando de nossas vacilações; nossa vida se compõe de três etapas: vacilar, vacilar e morrer. A morte, ao contrário, não vacila diante de nós. Nos mata e acabou-se.”

Essa perspectiva, a de que ao nos submetermos ao jugo do escrúpulo abrimos mão de viver intensa e verdadeiramente, choca-se abruptamente com aquele pensamento que versa a existência humana como produto da inserção social, da coletivização. Processo que tem sua gênese na relação primeira do infante com sua mãe, seu pai; a absorção das noções de limites que se iniciam com os primeiros “nãos” de papai e mamãe, e tem continuidade com a educação na escola, na igreja.

O que é viver? Será apenas respirar, copular, comer, defecar? Ou a vida também é significado de sociedade, de limites, de lei. Vivo só, ou sou eu na medida em que o outro que me reconhece?

Em verdade não me proponho a oferecer respostas. Se o escrúpulo é de fato o triunfo da morte? Sim, penso que sim, pois quantas experiências deixamos de viver por conta de que determinado comportamento pode ser “errado”? A vida passa muito rápida, as horas, os átimos de segundos se vão com uma rapidez implacável, e o que não é vivido agora, não volta. Hoje é hoje, agora é agora, e o corpo envelhece continuamente. O vigor e a disposição de fazer (o que é para ser feito) irão desaparecer inexoravelmente.

E a lei? É possível viver sem moral, sem norteadores de conduta? Existe possibilidade de se viver sem regras, sem o outro, sem o coletivo? Se há o outro, há o limite dele, e esse limite é o meu também, porque como gozar o meu gozo, se isso passa por ultrapassar o limite do outro, e até subjugá-lo?

O escrúpulo existe. O próprio pensamento e a linguagem são frutos dessa lei, que me castra em várias partes, para que o outro possa ser ouvido, para que eu possa comunicar minha castração.

Sinto-me terrivelmente tentado a concluir, de modo aparentemente conservador, que é isso, que não há possibilidades fora dos escrúpulos. Mas também há aí uma outra verdade (já perceberam como são tantas as verdades?): a de que a hesitação, a paralisação moral é uma sentença de morte, porque nada se repete e as oportunidades são únicas.

Entre uma possibilidade e outra, entre tantas verdades, calo-me. Constato, abobalhado, que sou pequeno. Que morro, porque sou escrupuloso. Que vivo, porque faço piada da moral que me preserva.

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 25/07/2008
Reeditado em 04/07/2011
Código do texto: T1097011
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