Sobre a Tristeza

 

       Montaigne é um de meus autores preferidos. Melhor ainda: o livro Ensaios, de Montaigne, é um de meus livros favoritos. Eu o tenho sempre por perto. É uma edição antiga, da Abril Cultural, encadernado de azul e dourado. Mas o dourado, de tanto uso, já está desaparecendo. Além disso as suas páginas estão todas rabiscadas Ou seja, o tempo todo eu dou palpite nos escritos de Montaigne. Não é sempre que concordo com ele, mas sempre reflito com ele.

        Da Tristeza é um de seus Ensaios que mais gosto. Por um acaso o li hoje mais uma vez. Eu estava tirando o pó de minha mesa de trabalho, onde ele sempre fica. E como sempre, larguei o serviço para lá e fui novamente ler o texto.

         Montaigne confessa que não tem disposição de espírito para a tristeza. Nem eu. Mas ele relata no ensaio alguns acontecimentos que levaram ao paroxismo da tristeza pessoas que ele admirava. Fala de situações de extremo sofrimento em que a pessoa manteve-se impassível: Psamético, rei do Egito, não se abateu exteriormente ao ver a filha transformada em serva pelo Rei da Pérsia, que o derrotara, nem ao ver o filho ser levado para a morte. Mas se desesperou quando viu um seu antigo criado ser torturado. Conta ainda que um determinado príncipe ao receber a notícia da morte de um irmão e logo a seguir a de outro, portou-se com coragem e resignação. Mas pouco depois desabou em lamentações quando recebeu a notícia da morte de um amigo. O que se passou na verdade é que a medida de sofrimento estava cheia e um acontecimento que aparentemente deveria ser menos doloroso é que acabou provocando o descontrole emocional. Escrevi na frente com minha letrinha miúda: A gota que transborda o copo nem sempre é a mais importante. Mais que isso: geralmente não é.Muitas vezes eu “derramei o caldo” por causa de coisas insignificantes enquanto me mantive firme em coisas que derrubariam qualquer um. Apenas minha capacidade de controle tinha chegado ao fim. É a famosa gota d’água.

   Existem dores que vão além da dor. São tão duras e pesadas que paralisam a nossa capacidade de sentir. Eu ainda trago na lembrança os primeiros tempos após a morte de meu pai: eu continuei a viver como se nada tivesse acontecido, envolvida pelos trâmites do inventário, que desejávamos fosse resolvido logo. Um mês e vinte dias após a sua morte, em uma véspera de Natal, quando o Juiz assinou finalmente o Formal de Partilha, eu fui para casa e chorei como nunca havia chorado antes: entrei no banheiro e acho que tomei um banho de lágrimas. Foi só então que compreendi a imensidão de minha perda e o que isso resultaria em termos de mudança para a minha vida.  

     Eu não sou uma pessoa de chorar. Eu até diria que em minha família não somos chorões. Ninguém. No entanto não consigo resistir a um filme triste. No escurinho do cinema eu choro como um bezerro desmamado. Quando vou a enterros de pessoas conhecidas tenho que ir de óculos escuros porque sempre choro. Mas os meus mortos me transformam em pedra. Talvez isso aconteça porque uma das afirmações mais sérias que eu ouvi da pena de Montaigne, nesse mesmo ensaio, foi: “Quem pode dizer a que ponto arde, arde bem pouco”. Uma dor verdadeira não pode ser realmente medida por palavras ou lágrimas. Mas uma dor verdadeira pode matar. Vi isso acontecer com minha tia-madrinha Amelinha. Ela não conseguiu resistir à morte de um filho. Eu por minha vez, procuro a minha válvula de escape: vou chorar no escurinho do cinema. Lavras,26 de julho de 2008