Lembranças de vovó.

Nos anos cinqüenta, lá na roça, não havia energia elétrica, apenas lamparina com querosene ou azeite para iluminar a noite quando necessário.

Algumas fazendas, poucas na região, possuíam um gerador movido por uma roda d água, como o da fazenda de meus avós materno.

A usina ficava nos fundos da fazenda, cerca de uns seiscentos metros abaixo, era alimentado por água do córrego represado que fora desviado para que passasse no terreiro, do lado da cozinha.

Quando mudamos para lá este córrego possuía suas margens irregulares e havia um pequeno volume de água represado e muita água escapando pela sua margem esquerda antes de chegar à barragem.

Lembro-me de vovó chamar meu pai logo depois de nos acomodar e falar:

- Walter eu queria que você acertasse as margens do córrego e a barragem aqui perto do terreiro e arrumasse as caixas de comporta para (¹) moinho, para a (²) usina elétrica e a do (³) carneiro.

Vou pedir para os camaradas carregar pedras para você refazer a barragem e calçar as margens, onde esta com vazamento, ta bom!?

Papai sempre fora um homem zeloso, não era seu ofício, havia voltado há pouco tempo de São Paulo onde trabalhou vários anos numa Mercearia, mas disse que faria sim e logo começou o serviço.

Eu tinha quase dois aninhos e gostava de ficar observando o que papai estava fazendo.

Em poucos dias o serviço estava pronto.

Ah como papai arrumou tudo bonito, gora sim dava gosto ficar sentado ali nas margens, tomar aquela água límpida e fresca o dia todo.

Ouvir o barulho d’água transbordando sob a barragem de pedra. Deitar ali na margem direita do córrego sob a mureta construída pelo papai. Eu passava horas lá observando os pequenos lambaris e girinos que pareciam não se importar comigo ali e se divertiam naquela água límpida e calma.

Havia na margem esquerda três comportas, conforme disse anteriormente, uma para o (¹) moinho, outra para a (²) usina elétrica e outra para o (³) carneiro.

Quando a água não estava sendo utilizada por nenhuma destas comportas ela transbordava por cima da barragem de pedra que papai havia refeito cuidadosamente. E a água seguia seu curso córrego abaixo em direção a casa do monjolo e depois vazava grota abaixo recuperando seu curso de origem.

Qualquer curso de água sempre me fascinou, principalmente aquele córrego o qual saciava minha sede e mais tarde serviu para sustentar minha primeira jangada, feita de tronco de bananeira, na qual passava muito tempo subindo e descendo seu leito, passando pelas margens sombreadas por galhos verdes repletos de amoras deliciosas.

Vez e outra dividiam o espaço com algumas cobras d água ancoradas as margens do córrego. Vovó dizia que cobra d’água não faziam nenhum mal então eu não tinha medo.

Quando chegava o anoitecer era a vez dos sapos que vinham em grupo e dispostos para o concerto. Era uma cantoria só !

Lá da cozinha, no “rabo” do fogão me aquecendo e ainda proseando com vovó ficava a ouvir os sapos lá fora numa animação só!

O concerto começara o tenor prevalecia sobre os demais, era um som que parecia dizer:

“ - joaaaaaão.. cê vaiii ?

- vouuuu!

- joaaaaaão.. cê vaiii ?

- vouuuu!

Ah, havia também um sapo que emitia um som que parecia da bigorna, era o sapo ferreiro como chamávamos pois parecia estar sempre batendo com o martelo em sua bigorna.

E isto se repetia até a madrugada chegar ao meio de outros sons, coaxo e piado de aves noturnas quando esta orquestra não era quebrada por uma raposa, cachorro do mato a espantar as galinhas no galinheiro na tentativa de roubá-las.

Então vovó corria porta a fora em socorro das crias e depois de segura que afugentara os intrusos ela voltava.

Reinando a tranqüilidade vovó voltava a beira do fogão, vovô já havia recolhido em seu quarto e nós ficávamos conversando mais um pouco, geralmente eu como sempre perguntando as coisas para vovó e ela tranqüilamente respondendo.

De repente ela se afastava ia até o armário que ficava na dispensa pegava uma taça de leite e dizia:

- Adarto (*¹)... bebe seu leite com farinha antes de dormir.

Pegava a (*²) taça com leite e farinha de milho e com uma colher tomava aquilo com gosto. Depois tomava a bênção e ia dormir.

No dia seguinte tudo se repetia!

(¹) moinho – consiste de uma pedra bruta medindo cerca de 1m de diâmetro por uns 20 cm de espessura, com um furo de cerca de de 15 cm de circunferência ao centro.

Esta roda de pedra na horizontal sob um bloco plano de pedra girava triturando o milho que era colocado sobre o orifício central. Após moído o grão o mistura fina caia numa caixa que armazenava o produto. A Roda de pedra era movido por um sistema de engrenagem em combinação com a roda d’água.

(²) usina elétrica = Um pequeno gerado (motor) movimentado por uma roda d’água que gera energia (contínua) elétrica.

(³) carneiro = uma esfera metálica com seu bojo oco que ao encher de água movimenta um pino criando um sistema hidráulico de elevar a água até um reservatório. Muito utilizado no interior de Minas e Rio de Janeiro.

(*¹) Adarto = é a maneira que vovó me chamava assim como os demais empregados (camaradas) lá da roça.