Tenho que me Vestir.

Eu não tenho que escrever nada, mas escrevo. Escrevo porque gosto, desde os séculos dos séculos. E quando me faltam palavras, invento. Tenho o meu próprio Aurélio que saco de um lugar secreto. Escrevo o que falo e também o que não falo. Mas ultimamente, estou um pouco preocupada com essa mania de escrever. Porque escrever se tornou perigoso. Desde que botei esse blog para funcionar, comecei a ficar nua diante do computador. Nua de alma. Escrever sobre miudezas é muito pornográfico. Revela o direito e o avesso e isso é muito constrangedor.

Às vezes acordo, a noite, ligeiramente incomodada. E o incômodo me vem no rastro de um pensamento que vasculha lá da cama o que escrevi aqui no blog. Como um cão faminto derruba uma lata de lixo em busca de comida, e vai revirando tudo, eu vou revirando o que escrevi, para descobrir que a condição de blogueira fez de mim um ser completamente desamparado. Desamparado mas sem fome. Aqui mato a minha fome. E as pessoas não desconfiam, elas têm certeza. Elas têm essa certeza desconcertante de que estou aqui, batendo devagar um bolo, para matar a minha fome, a minha única fome, essa mesmo que nunca foi unicamente saciada.

Porque escrevi um livro que contava a vida de Abraão, o Pai da Fé. Fui tão bem sucedida nesse projeto que ninguém desconfiou que Abraão era eu e que eu vira o patriarca nu bem antes de Sara. Quem poderia desconfiar que eu saira de Ur dos Caldeus em busca da Terra Prometida? Quem poderia conceber que fui ao Egito em busca das riquezas de Faraó? Quem diria que o Isaque de Abrãao era o meu? Eu me tornei inocente e fiz Abraão culpado. Culpado pela minha perplexidade, culpado pelo meu sentimento de abandono, culpado pela dor e pela mágoa que foi muito funda e que, por ser tão funda, varou a terra, e do oriente, veio parar no ocidente, bem no meio do meu coração, como uma faca encravada. Mas essa perplexidade, essa dor e essa mágoa pôde ser perdoada pelos religiosos, porque ela era de Abraão, não era minha. Abraão pode.

Depois escrevi um livro que falava sobre as misérias humanas. Um livro que provava biblicamente que é mesmo "maldito o homem que confia no homem." Mas o que ninguém sabia, é que eu estava falando de mim. De mim mesma. De mim, que sou fiel a um amigo até a morte, mas mato o amigo, sem dó nem piedade, se ele não for fiel a mim. E só o ressuscito depois que Deus desce e me ameaça com uma faca na mão. Ou perdoa, ou morre. Para não morrer, perdôo. Perdôo matando uma parte de mim, aquela mesma parte que precisa morrer e ficar mortinha, roxinha, durinha, e ser comida pelos vermes para que eu possa, enfim, encontrar a paz.

Então. Então é isso. Por ora é só isso. Tenho que me vestir.