Fim de Semana.

Fim de semana chegou, ou fui eu quem cheguei até ele. Meu final de semana começa propriamente, ao meio dia de sábado. É então que o sábado abre para mim a sua boca escancarada. Como a entrada de um túnel escuro e sombrio, que leva do nada para lugar algum. Entro no túnel porque tenho que entrar, porque uma força gravitacional me suga, porque não posso continuar existindo sem passar pelo túnel do tempo. Enquanto houver vida, haverão os sábados. Esqueci de falar do vácuo. Vácuo é um buraco que parece não ter fim. De vez em quando, caio num desses, mas pela graça de Deus, levanto e prossigo. No meio do túnel, uma luzinha bruxuleante parece sinalizar a primeira parada: o jantar no restaurante chinês.

Há 30 anos jantamos todos os sábados no mesmo restaurante, e comemos sempre a mesma comida: macarrão com carne e legumes ao molho de shoyo. O mesmo prato que meu marido teima em chamar de Yakissoba, enquanto olha para a cara boa e gorda do nosso velho amigo chinês. Há 30 anos digo a ele que Yakissoba é japonês, que China e Japão não se dão bem, desde que o Japão invadiu a China. Ele ri gostoso, e parece não acreditar, parece não compreender que, para um chinês ortodoxo, ter o seu macarrão chamado de Yakissoba pode ser uma oportunidade terrível de vingança contra qualquer invasor territorial. No caso nós dois. Nós dois, um restaurante vazio, e uma panela vazia, para ele realizar ali a alquimia que bem entender. Ou que o invasor merecer. Porque jantamos às 19 horas, para voltar logo para casa. Já saimos de casa sabendo que o mais gostoso da noite do sábado, depois do macarrão chinês, é a volta para casa. Também porque já sabemos aonde levam todos os caminhos dos nossos sábados. Então nos apressamos para percorrer logo o mesmo caminho.

Bem, eu havia parado no yakissoba, lembra? Pois é. No sábado seguinte, lá está o nosso amigo chinês perguntando com a sua cara boa e gorda: O de sempre? E ele respondendo: isso, um yakissoba bem frito. Desisto! Deve ser efeito da globalização. Ultimamente quem nos atende é Hermínia, a esposa do nosso amigo chinês que, você já deve ter desconfiado, nunca perguntamos o nome. Comemos do seu macarrão há 30 anos e não sabemos o seu nome. Sabemos de detalhes da sua vida, como os da recente viagem que fez para EUA, China e... Japão! Mas não sabemos o seu nome. Como posso saber o nome desse homem que nos saúda com um riso largo esfregando as mãos? Perguntando assim, sem mais nem menos, depois de 30 anos: como é o seu nome? Eu não tenho coragem. Fazer essa pergunta seria admitir a nossa ingratidão para com aquele que há 30 anos prepara-nos o prato de cada sábado. Então, vamos disfarçando na intimidade, a negligência. Sorrindo bondosamente uns para com os outros. Já Hermínia, não. Faço questão de saudar Hermínia em voz alta, pronunciando bem as letras do seu nome, na entrada e na saida, desde agora e para sempre.

E então, voltamos para casa, e juntos assistimos todos os noticiários que ficaram sendo gravados, um em cada televisão. Depois, se ele dorme, eu penso. Que pensar é matéria de que gosto muito. Antes de dormir, ainda cabe o lanchinho da madrugada, que às vezes é na madrugada, mas às vezes, é às 23 horas mesmo. Se passo distraida pelo quarto do Paulo, me perco e entro. Eu que fujo dessas distrações, porque 14 anos depois, elas ainda doem. Então não me distraio.

Chega o domingo. Domingo é melhor, porque do meio do túnel se avista a luz no seu final. Uma luz grande e boa. Eu me visto de dona de casa, logo que amanhece o dia. Esse é o dia que o Senhor me deu para ser dona de casa. Dia em que sou alforriada da presença da Nalva e ela, da minha presença. Embora eu desconfie que já estamos há tanto tempo juntas, que passamos a sentir falta uma da outra. Mas, eu não quero me desviar do percurso. Que é assim: Ivo sai cedo para o Senadinho. Eu vou cedo para a cozinha. Cozinha você sabe o que é: lugar onde se cozinha. Lugar também onde entram todas as cachorrras para me fazer festa, porque nesse dia a cozinha é nossa.

Senadinho: senadinho é um lugar de muita agitação política. Era para ser. Mas, mesmo sabendo que alguns frequentadores do Senadinho vão me ler, vou contar a verdade: Senadinho é um lugar onde os amigos se reunem para fofocar. Um lugar de uma fofoca boa e pura. Um lugar de celebração. Um lugar para compartilhar as histórias que agitaram a cidade durante a semana. Se não se tem, se inventa. Senadinho é um café da manhã na casa de Dona Helena Camargo, ela a "presidenta de honra" do Senado. A mais velha, a mais amada, a mãe cercada dos filhos que não lhe nasceram, mas, sabe-se lá porquê, adotou. Os filhos, esses buscam na memória a criança que um dia foram e para lá vão, como vão felizes os meninos, a um parque infantil. Os outros cargos: Secretária - Tereza; demais membros: Ivo, Bira, e Abreu. Essas são cadeiras cativas. Ocasionalmente abre-se espaço para Angela e para outros convidados. Mas, normalmente, os convidados não passam no teste de admissão e assim, não podem voltar mais. O teste de admissão é entrar no espírito daquela coisa, que, diga-se de passagem, tem uma certa ordem filosófica no meio da baderna organizada. Os membros precisam ter humor, filosofar, inventar e obviamente... fofocar. As fofocas mais esperadas são aquelas que eles mesmos inventam sobre si e as esposas. Do tipo: Ivo, eu pedi pra ela escolher entre eu e o Mi, e ela disse que preferia o Mi. Mi é o cachorro.

Na cozinha, eu reencontro as minhas panelas. Todo domingo eu me prometo que, na segunda feira, vou assumir a minha função de dona de casa, vou escolher o que comer, escolher o que deve acontecer no circuito da minha cozinha. Mas na segunda feira, Nalva assume o seu posto, coloca na panela o que ela bem entende, e eu fico quieta e a vontade passa. Até o próximo domingo.

Por volta das 11 horas ele chega, com uma sacola de compras na mão, trazendo do mercado tudo o que eu pedi. Ele vem para mim feliz, como um aluno que traz para a professora o dever de casa. Eu vou para ele, feliz, como uma mulher que sabe que o marido precisa de amigos bons que lhe revelem, como num espelho, a sua própria mesma bondade. Cada um na sua mesmice existencial tão mesma. Porque a vida é tecida dessas amenidades e alguém aqui em casa tem que ter um vício ameno.

A noite chega e com ela a possibilidade de participar de um culto em qualquer lugar da cidade. Se eu prego, prego para mim e para os outros. Se eu não prego, posso escolher em qual casa outros pregarão para mim, porque todos são irmãos e na casa de meu Pai existem muitas moradas. Posso escolher, portanto, qualquer uma delas. De qualquer jeito, estou em casa.

Com a hora mais escura, chega também o fim do túnel e do dia. Vou dormir, eu que já me escrevi para você me ler. Parece que encontrei um grupo de gente que, em me lendo, gostam de se ler. Pois que me leiam então.