Meu contacto com Adélia Prado.

O que vou narrar aqui, se passou no final dos anos 80. Começa comigo e vai até Adélia Prado. Depois volta para você.

Acompanhe: Eu, que sempre elegi a prosa como meu veículo de expressão, por esse tempo, quis dizer as coisas que digo de uma forma mais solta, mais leve, mais pura. Isso mesmo: resolvi escrever poesias!

Tinha lido Adélia Prado e aquilo me pareceu tão simples na sua complexidade, ( veja se você me entende!), que decidi incursionar pelo mundo dos versos. Ai que delícia pegar palavras soltas, aparentemente desconexas, e dar a elas um sentido que só eu sabia. Porque se palavras tem vocação, apostei que cada um que me lesse, poderia dar-lhes a vocação que desejasse. Pensei que fazer verso fosse uma forma democrática de dizer, por exemplo: Hoje o dia está triste. Triste está o dia. Só isso. E então o leitor poderia dar à tristeza do dia o rumo que bem entendesse. Apenas isso.

Eu havia comprado um único livro de Adélia Prado, que estava despontando na época, festejadíssima pela crítica, pela imprensa, pela classe artística. E, confesso para você, entendi pouca coisa do que foi escrito ali. Mas eu me esforçava, lia de novo, não desistia.

Quase como se tivesse uma Bíblia na mão, ficava contrita, o livro apertado contra o peito, pedindo uma súbita iluminação que me viesse do alto, para compreender melhor aquele ser que usava as palavras como quem usa um punhal. Um punhal que não cortava a minha carne, não deixava nenhum sinal visível dentro de mim, algo que eu pudesse enfim tocar e dizer: eis aqui! A minha carne dura de camponesa, acostumada à brutalidade da pedra, queria um texto que me indicasse um início, um meio e um fim. Mas eu não encontrava a porta de entrada e, consequentemente, nem a de saida.

Com o livro nas mãos, parecia-me ter algo de santo, e não sabia a quem recorrer para obter a sua santitude máxima, aquela mesma que me escapava muito antes de ser percorrida pelos meus neurônios. Adélia Prado era para mim uma avenida fechada.

Estou lhe narrando não apenas a maneira como contactei Adélia Prado ( sim, eu consegui), mas, principalmente, o caminho que me levou a descobrir que há uma senha secreta nesse mundo mágico e fechado da poesia. Uma única senha para todos. Se alguém lhe der a senha, você entra. Caso contrário, esqueça, e vá ser camponesa proseando na vida.

Um dia, decidi me vingar:

já que eu não entendia

o que Adélia Prado escrevia,

faria o caminho inverso

escrevendo os meus próprios versos.

Não, não acredite que eu tenha escrito isso. Quis fazer humor porque o meu próximo contato será o Chico Anísio.

Fui, então, escrever poesias. Juntei num calhamaço de papel a minha criação literária. Nem precisei caprichar. Escrevi, como me disse Marília Paixão, num jorro, como se as palavras fossem águas saindo de uma mangueira grossa ( viu Marília, aprenda essa lição, nunca diga em secreto o que pode ser usado em público. Não coloquei aspas porque guardei apenas o sentido).

Poesias prontas, batidas a máquina, na minha velha Remington já bem batucada, aqui e ali uns borrões de errorex, enfeitando as páginas como pontinhos de nuvens brancas, e lá se foram as minhas páginas poéticas do sul para o sudeste do Brasil. Decidi mandar assim mesmo para que Adélia visse a minha autenticidade tão autêntica no universo da poesia.

O endereço? Foi barbada. Eu sabia que ela morava em Divinópolis e sabia que o marido dela chamava Zé e era funcionário do Banco do Brasil. Claro que não liguei para o Banco do Brasil e falei:

- Quero falar com o Zé.

- Que Zé?

- O Zé da Adélia Prado.

Não, não fiz isso. Mas confesso, pensei.

Fiz a coisa acertada nessa festa doida. ( me inspirei em Dona Doida pra dizer essa festa doida). Telefonei para o departamento de cultura da Prefeitura Municipal e disse que precisava do endereço de Adélia Prado para enviar-lhe um convite cultural.

Você está pensando que menti? Claro que não. Era um convite cultural para que Adélia conhecesse, em primeira mão, aquela que poderia sucedê-la um dia, no universo artístico. A próxima peça encenada por Fernanda Montenegro poderia ser baseada em minhas obras, como a última estava sendo baseada em obras dela.

Difícil foi falar de um estado para o outro numa época em que a telefonia pública no Brasil estava na idade jurássica. Mas eu sou persistente. Gastei um dia, e consegui. Aos gritos, a atendente da secretaria da cultura me passou o endereço dela. E aos gritos, não sei porque, eu repetia e anotava, tomada de uma euforia máxima.

Mandei pelo correio. O atendente me perguntou: porte simples ou registrado? ( não havia sedex). Claro que optei pelo registrado, porque se ela não me respondesse, eu saberia que não respondera porque não quisera me responder. Eu precisava saber isso. Secretamente, estava me preparando para receber o silêncio dos dinossauros. Estávamos na era jurássica, lembra?

Eu que via Adélia Prado assumindo a sua ancianidade precoce, com aqueles cabelos brancos, e achava tudo que vinha dela tão lindo, estava me preparando para odiá-la mortalmente caso me ignorasse.

Mas ela não me ignorou. Bondosamente me respondeu cerca de 30 dias depois com a sua letra bem desenhada. E o que ela escreveu, nunca mais vou esquecer.

Escreveu assim: "Ana Maria, você escreve cartas admiráveis." Só me lembro textualmente disso. Porque foi o único elogio que recebi. O resto dizia sem dó nem piedade que a minha poesia não se resolvia, que ela ficava em torno de. Assim mesmo: "a sua poesia não se resolve, ela fica em torno de."

Fiquei com a carta na mão e o calhamaço de poesias (sim, para minha tristeza, ela devolveu). Fiquei assim mesmo, como você está imaginando, sem ódio mas meio abestalhada com a crueza de uma Adélia que, se não me cortou a carne em verso, fez picadinho do meu coração em prosa.

Entendi que eu jamais seria poetisa porque não sabia concluir as idéias, as mesmas idéias que eu achava que ela também não concluia. Estávamos empatadas.

Os dias se passaram, e eu decidi secretamente enterrar meus talentos literários.

A casa ficou mais silenciosa sem o batuque da máquina e as crianças ficaram mais felizes porque ganharam de volta a mãe. Enfiei a cara na maternidade, porque se tenho que ser compulsiva com alguma coisa, então, naquele momento crítico, escolhi essa compulsão mais nobre para me redimir.

Viu sua boba, no que deu? Burra, sua poesia não se resolve, ela fica em torno de. Como você. Você também é mal resolvida.

Foi um período bom. Paguei meus pecados.

Passado um tempo, voltei a me lembrar da frase: "Você escreve cartas admiráveis". Todos os dias, eu tomava essa frase como unguento e a aplicava ao meu coração, procurando o que fazer com ela. Passada a mágoa inicial, essa colocação me pareceu um presente caro mas totalmente inadequado.

Onde já se viu, em algum lugar do mundo, uma escritora que ficasse conhecida por escrever cartas, ainda que elas fossem admiráveis?

Contudo não me saia da cabeça o valor do presente: "Adélia Prado disse que eu escrevo cartas admiráveis e ainda me disse - agora lembro- que ela não sabe escrever cartas assim!"

Esse era o valor que, coincidentemente, eu também reconhecia. Muitas vezes gostava tanto de uma carta que copiava num caderno só para não perdê-la, quando fosse para o seu destinatário. Tão lindas as minhas cartas! Passei a escrevê-las para mim, enquanto escrevia para os outros.

Um dia, a ficha caiu: carta é um texto pessoal que você escreve para alguém que lhe é próximo. Ou não. Há cartas que poderiam ser endereçadas a toda a humanidade. Há cartas que são exclusivas para mães. Outras, mais seletas ainda, para mães enlutadas. Outras, para jovens, para velhos, para crianças. Cartas para a humanidade. Porque muda o endereço, mas a universalidade dos sentimentos nos aproxima uns dos outros, de uma forma mágica.

Meu Deus, eu poderia sim, escrever cartas!

Não perdi mais tempo. Saí pelo mundo escrevendo cartas. Como essa que escrevo agora para você. Como aquelas que escrevo todos os dias em forma de crônicas.

Na verdade, Adélia não se enganou. Ela fez de mim um vaticínio: sou uma carta ambulante e o meu desejo é que ela seja lida por todos os homens. Pelos intectuais e pelos camponeses. Pelos poetas e pelos brutos. Pelos que amam e pelos que odeiam. Pelos que riem e pelo que choram.

Com intensa comoção.