Casebre e pó II

Nobre presença! A que devo tamanha honra?

O ar, que não pesa, carrega, às vezes, peso ao soar. Tais palavras tiraram-me do sono fortuito que de tempo em tempo me meto, para não dar conta de mim.

Não sei se adormeci, disse eu. Esse barulho que mora ai fora me parece novo; não lembro de o ter encontrado antes. Como podes dormir tuas noites assim?

Talvez esse barulho aqui fora fosse ainda maior se eu não tivesse fechado os olhos ai dentro, falou o enigmático ser, posto à porta da casa.

Às vezes sinto vontade de chorar, velho amigo. Contei-lhe.

Esperem. Antes de prosseguir, desejo relatar algo: pode parecer que eu lhes pareça ilógico (emito assim meu parecer) ou fora da normalidade, afirmo: nem uma coisa; nem outra. Se falo sem cumprimentos anteriores, ou corto diálogos éticos desinteressantes, é porque mostro a angústia como ela é, e não fujo disso. O que precisava sair é o que foi dito: sem economia de palavras, sem preâmbulos sem sentido. Puras e simples, as palavras. Como são em suas raízes: as palavras...

Terminado meu pequeno parêntese, relato o que Tenório falou:

És demais, pobre rapaz. Tu que sonha não contempla; e quando contemplar, não mais sonhará: não haverá necessidade; a confusão que tu fez é paisagens que seus olhos não podem pensar. Curva-te, pois se mudares o que pensa, mudará quem és.

Sou o que represento, pontuei. Se corro para dentro de mim, não sou: escondo. O que vês é o que denominam de realidade. Realidade crua e sem adereços.

Ora, prosseguiu entusiasmado o nômade morador, já lestes William Blake?

Creio que não.

Há algo que ele ensinou-me: alegrias não riem, tristezas não choram.

Não compreendo.

O que Blake quis dizer, ao meu ver, tardo amigo, é que o que tu representa não é o que tu és, mas o que idealizaram que fosse. A única coisa que vive é o que está por dentro. Por fora, carne apodrece; por dentro, morre-se sem odor. Nem sempre o que é feliz vive de risos, nem sempre o que vive de risos é feliz, em suma. Então, o que te aflige? Deixa simplesmente despencarem as lágrimas: a gravidade se encarrega do resto.

Sei o que dizes agora. O que ocorre é que há uma linha tênue entre o compreender e o ser. No meu caso, uma linha entre o compreender e o mudar.

O que se é é o que se muda, nobre garoto. Estar já é de alguma forma mudar, porque a vida não é uma constante; teu rosto hoje já não é o de ontem (não só por fora, mas principalmente por dentro).

Se meus pensamentos tivessem asas, juraria que não estava mais onde estava, e provaria que até o estar é relativo, mas não acredito nisso. Não acredito porque me confundo, e se confundo-me, não posso tomar isso como verdade. Não posso me projetar para além de onde estou, pois o que vive é o aqui, não o lá. Pessoas de todos os tempos tentaram se desvincular do que são para projetar metafísicas secretas do que deveriam ser (sim, deveriam, já que, verdadeiramente, não podem ser). Não me atrevi a exteriorizar isso (antes minha moral à meu direito, já que aquela não é coercível). Não desacredito no que penso. Se não o coloquei pra fora foi para que Tenório não derrubasse isso logicamente – sei que ele poderia. Meu império de idéias, mesmo que falso, me faz levemente feliz. Não há que derrubar isso. Não há que demolir: é o que se sente. Simples, coloquial, que importa? É o que se sente. Vê-lo sucumbir, império de mágicas, vê-lo cair como se nada fosse, quebraria a parte do meu coração que ainda vive como coração. Que tanto carregas ó coração? Ó coração...

obs: Ainda continua. Por favor, não reparem nos erros que possa existir: não revisei com calma. De qualquer forma, creio que a idéia - que é o principal - foi transmitida. Até mais