Eu queria uma bota preta sem salto, dessas de montaria. Que agasalhasse a minha perna, nesse inverno frio e chuvoso. De loja em loja, fui procurando, sem pressa. Na última, enrosquei. Encontrei uma vendedora, que não tinha a bota que eu queria, mas tinha a persistência chata, que, como consumidora,  não merecia. 

Trinta  minutos de marcação cerrada. Percebi a "roubada" logo nas primeiras rodadas de "negociações."  Inútil a vendedora tentar me convencer com argumentos do tipo "esta é linda e quase não tem salto." De um lado,  a inocência dos dezoito anos, e do outro lado, o olhar bem focado de toda uma vida. Só o tempo se encarregaria de fazê-la compreender  que uma mulher da minha idade sabe exatamente o que quer. E o que não quer. E eu queria uma bota preta,  sem salto, rasa, rente ao chão, que em nada me fizesse lembrar a perua que fui um dia. Ponto final.

Ficamos nesse impasse. A moça  não desistia, enquanto eu, desamparada, mas irredutivelmente, esperava que ela desistisse. A cada vez que a moça sumia lá dentro,  em busca de uma nova rodada de botas, eu respirava aliviada e olhava em volta. Espiava o mundo ao redor.

O mundo ao redor. Tão igual, em suas potenciais necessidades. Tão pequeno, em suas mínimas frivolidades. Tão boçal, em suas ínfimas particularidades.  O mundo ao redor escolhia sapatos e bolsas e botas, mas no Iraque, ninguém sabia.

 Ao meu lado, cada mãe com sua filha. Pela proximidade, fiquei observando uma menina espigadinha, toda contrita na devoção da escolha de sua primeira: bota!

- Mãe, essa ficou linda. 
- Mas tá apertada. Seu pé é largo.
- Por isso que precisa ser essa, porque aperta um pouco esse largão do pé aqui óh... e colocava a mão sobre o peito do pé.
- Esse pé é igual o do pai - dizia a menina, como se o pé do pai pudesse salvá-la do argumento da mãe.
- Depois você não guenta.
- Eu guento sim, mãe.
- Não guenta, não. 

A menina traida pela mãe esperança-perdida,  equilibrava-se precariamente sobre uma bota de muitíssimo mal gosto, totalmente inadequada a  uma jovenzinha franzina. A bota tinha bico fino e um salto com vocação  para gente grande,  que não combinava em nada com a sua perninha longa e fina, de passos hesitantes e  pés voltados em ângulo para dentro.

 Outro impasse, novo jogo de cintura,  dessa vez em triângulo:  a mãe, a menina e a vendedora. A menina, fremindo pela urgência de ser mulher.  A mãe, constrangida por essa vontade precoce. A vendedora, ardente  em cifras.
 
Percebendo que a parte mais frágil poderia decidir a compra, ela  estimulava - em você ficou linda. 
A menina não precisava dessa ajuda para acreditar, ela que via a bota como o seu passaporte para o mundo das mulheres, esse mesmo mundo que nunca lhe parecera tão próximo. E que a mãe lhe negava a entrada. Ai que mundo mal!

Mal porque para cima de mim,  lá vem de novo a vendedora com mais uma rodada de botas "quase sem salto."

 Eu via o salto que ela não via. Via também que, para uma jovem, um salto, para ser considerado salto alto, teria que ser assim mais ou menos da altura das cataratas do Iguaçu. Se as circunstâncias facilitassem, a comunicação poderia ser estabelecida.  Mas, ela do alto das cataratas do Iguaçu, e eu rasinha ao chão, nunca poderíamos  estabelecer o consenso primário  tão necessário nas relações mercantis: uma pessoa quer comprar  uma bota preta sem salto;  outra pessoa quer vender uma bota preta sem salto; mercadoria experimentada, preço justo e acertado, uma parte leva a bota e a outra  fica com o dinheiro. Simples assim.

Não, no caso da garotinha. A garotinha não estava comprando uma bota, ela estava comprando o ingresso ao mundo mágico das mais longínquas claridades, aquele mundo que só ela via, e que lhe permitiria, por fim, adentrar na abstração da sensualidade tão desejada.

 O imbróglio persistia. Mais botas do lado de lá, mais botas do lado de cá. A menina não convencia a mãe, que não convencia  a vendedora. Como ave de rapina que não quer soltar a presa, a moça derramava candidamente o seu líquido mordaz de fel: - Em você, ficou linda.

 Do lado de cá uma mulher  desamparada, sem mãe, sem companhia, sem ter com quem  argumentar a sua verdade mais primária: eu não queria o que ela tinha para me vender, e ela não tinha para me vender, o que eu queria.  

 Quando tudo parecia perdido lá e cá, apertei bem a minha bolsa contra o corpo, única escudeira que me protegia daqueles olhos perscrutantes, e disse com a voz mais gentil que pude encontrar:
 -  sabe, na minha idade, a gente quer conforto, não quer saber mais de salto. 
Falei tão delicada, que nem eu sei em que profundidade fui buscar em mim a delicadeza que nunca, antes, conseguira encontrar.

 De nada  adiantou. A  alegada pretensa ancianidade não me conquistou a sua simpatia. Mas despertou a minha antipatia. Foi o empurrão que eu precisava para ir embora sem culpa.

Levantei-me de um lado e a mulher, talvez, encorajada, pelo meu gesto,  levantou-se do outro. Agradecemos e saimos, quase ao mesmo tempo, como se pertencêssemos à mesma família. Atrás de nós, duas vendedoras e um chão de botas.

  Na saida eu e a mãe nos entreolhamos, vitoriosas. A menina ficara ainda mais míuda, sem o seu chão de estrelas.

Pensa que acabou? Antes houvesse acabado.
 
Dias depois, quase por acaso,  bato os olhos em outra vitrine e  encontro a famigerada. Do jeitinho que eu queria.  Entro e compro. Cinco minutos.  A vendedora feliz, me diz: você fez uma ótima compra. Apontou para a caixa e me mostrou a marca: é da Schutz. Por mim podia ser da Swift, a marca de salsichas. Ou da Sadia, a marca das linguiças.  A bota era do jeito que eu queria, ainda que, olhando de longe, tivesse um brilhozinho a mais. Apenas um brilhozinho a mais.

Naquela mesma semana veio o frio que eu estava esperando e coloquei a bota, a noite, para ir pregar. Senti que estava linda e confortável. A minha dobradinha favorita. 

Quase na hora da saida, cruzo, casualmente,  com a Silvia que vem chegando:

-Ô mãe, onde cê vai com essa bota de paquita? Nossa, parece que foi bordada a mão. Deve ter sido uma nota essa bota de paetê, hen?
 
Há palavras que marcam como o ferro ao boi.  

Uma nota ou não, continuo sem bota e sem nota. Praga da vendedora.