UMA AÇÃO INUSITADA

Os escritores têm o gosto de transmutar as coisas, de fazer alegorias, analogias e metáforas. Em tema tão batido nas crônicas de final de ano, achei de enveredar por um destes milhares de caminhos que ao fim e ao cabo, como diria o velho Raul Seixas, vai dar no mesmo lugar. Lugar comum, talvez? Quem sabe? Particularmente acho que tornar o comum em incomum só dependo do olhar poético ou prosaico que temos sobre as coisas, sobre os fatos. Sem mais preâmbulos, entremos nos fatos.

A ação fora proposta coletivamente, mas antes mesmo de ser ajuizada na 4ª Vara Cível da Comarca de Pajuçara, no imponente prédio do Manguari, já contava de antemão com uma desistência, sabidamente protocolar. Impossibilidades outras impediram a participação de um ex-assistente e de estagiários. O Juiz de Direito e o seu substituto legal receberam a ação um tanto ressabiados, ora, onde já se viu no mundo do Direito, em Vara Cível, Ação de Confraternização e Ajuntamento. Por fim, consultada a hermenêutica jurisprudencial e a sabedoria consuetudinária, acharam por bem acolher a petição inicial, com os fundamentos muito bem concatenados por dois eminentes rábulas, cuja síntese passo a transcrever:

“Assim sendo, doutos Juízes, hão de convir Vossas Excelências, que merecemos por nossos feitos, defeitos e desfeitos, no transcorrer de um árduo e longo ano de trabalho, em que enfrentamos até mesmo uma desvairada e extenuante jornada de trabalho de 8 horas; atendendo a partes e advogados estressados, com limitações humanas e materiais; sim, repito, data vênia, haveremos de merecer todos nós, que subscrevemos esta desajuizada ação, como justa, inequívoca e insofismável reparação por tudo quando nos impingiu o sistema, um belo e saboroso prato de camarão, regado a louríssimas geladas, e para os abstêmios, uma deliciosa e também gelada água de côco, tudo às expensas da Justiça. Isto posto, e tendo tudo provado, pedimos consentimento.

A sentença veio em forma de libelo literário, cujo parágrafo final, conclui e ordena sem possibilidades de apelação em qualquer instância:

“Vistos etc. Considerando as razões fundantes de tão inusitada litigância; considerando as provas irrefutáveis juntadas aos autos, bem como a inércia e revelia do réu; considerando ainda o que preceitua o manual do Recursos Humanos e a legislação do Código do Processo dos Civilizados, onde está claro e cristalino que a cerveja e a água de côco, por suas essências mesmas constituem-se em um direito líqüido, portanto, certo, bem como por ser substancial e irresistível um bom prato de camarão, JULGAMOS PROCEDENTE em parte a Ação, condicionado o que se pede, a nossa inevitável participação. Indeferimos, no entanto, o pagamento da farra gastronômica, por parte da justiça, cabendo a esta, tão somente as custas processuais, pois com o pagamento de parte do 13º não sobrou dinheiro em caixa para farras adicionais, e estipulamos os honorários advocatícios em presentes nada secretos, no valor de 20 reais, a serem trocados entre os autores. Por fim, que tudo se execute no dia 14 de dezembro, dando-se posteriormente baixa na distribuição e arquivando-se em caixa de Segredo de Justiça!

Marcos Cavalcanti
Enviado por Marcos Cavalcanti em 06/08/2008
Reeditado em 25/09/2008
Código do texto: T1115657
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