Estava escrito assim: 

"Não acredito que termine. Nada termina. Para Deus não há fim. Muito bom ler vc Ana.
Maria Olímpia Alves de Mello"

Só Merô, comentou dois de meu textos.
Se eu fosse um celular, os comentários seriam a corrente elétrica que alimentaria a minha bateria. Preciso deles, sou neófita, não na arte de escrever, mas no duro ofício de ficar nua. 

Fazer crônica é ficar nua  aqui e para o Brasil inteiro. Mas às vezes reina silêncio no norte. E no sul, e no leste, e no oeste. Então decido firmemente, uma decisão firme que pode ser mudada a qualquer momento, decido que não vou mais fazer voie...- ai meu Deus, como se chama aquela palavra em francês voie... . Não sei, desisto. 
Sei o sentido das palavras em algumas línguas, mas não sei escrever. E aqui  ela me seria tão útil, para que só os mais desencanados entendessem.

 Bem, já que não tenho a palavra em francês, vou ter que pensar num jeito de falar em português. Num português que só uns e outros entendam.

Às vezes, eu sinto vontade de só escrever para uns e outros. Uns  da minha cidade, outros da cidade dos outros. Mas que todos esses uns e outros tivessem a simplicidade do cão.
 Do cão que entra no quintal alheio, cheira, sente, toca, revira, fareja, e depois abana o rabo, e vai embora, e se esquece.
 O cão deixa para trás  aquilo que não é dele, mas leva o osso que é seu. 
E se encontra mais do que pode comer, sem fome que está naquela hora, enterra a comida e volta, em tempos de barriga vazia.
 Ai, como eu queria que vocês fossem esses tais, que voltassem todos os dias para pegar o meu osso que é seu.  
Essa  humanidade mais pura é também um jeito heróico de existir. Toda nobreza é heroismo nesse mundo cão.
 Então, volte logo, será tão bão.

Rebobinemos a fita. 

Decido firmemente - uma decisão tão firme que pode ser mudada a qualquer momento - decido que não vou mais fazer.... nudismo não, seria demais.. que não vou mais fazer a exposição da barriga da minhoca, do peito da minhoca, das pernas da minhoca. Vou mostrar só os pés da minhoca. 
 E você vai ficar encantada com uma minhoca que enquanto despe os pés, os seus múltiplos pés,  pensa. E logo existe. 
Pensando bem acho que já tinha falado sobre isso. Não tinha necessidade de falar mais. Isso só significa que falar não é ficar livre do sentimento que nos detém.

Antes de ler o recado de Merô, recebi outro recado, não tão agradável. Ivo que sai as 5,00 horas da manhã para ir trabalhar em outra cidade, deixou-me na mesa do café, o seguinte: 

"Ana
Não esqueça de pegar os documentos do seu pai e os teus, pois acho que vai dar mais certo com os seus do que com os meus.
Ivo."

( E não é que ele escreve certinho essa questão dos "teus" e dos "seus". "Teu" para o que está próximo, "seu" para o que está mais longe). Eu estou longe e ele não sabe, mas o teu, o seu,  e o dele é tudo meu. Tão bom que é pertencer.
 

Pela manhã, demora sempre alguns  minutos a mais, para cair a minha ficha. Que não cai. Não sei do que se trata.
 Mas o que sei é suficiente. Ai meu Deus! 

 Vou ter que mexer naquela caixa que guardo escondendo dos olhos, só para que ela não me invada o coração.
 Tanta coisa ali dentro. Tanta gente compactada em arquivos. Tantos arquivos em PDF.( O que seria PDF?). Tantos sentimentos mal resolvidos. Tantos dias que nunca passaram. Tantas respostas que deixei para depois responder. Tantas perguntas que não fiz. 

Esse dias, quis saber como se fazia rosquinha de pinga. Eu tinha a pinga, tinha a farinha, tinha  a vontade, tinha a decisão, tinha o gosto, mas não tinha a receita. A receita da rosquinha de pinga da minha mãe. 

 Amor excessivamente represado, são águas que se misturam a entulhos, que se misturam a galhos secos, que vão varrendo tudo em volta, um redemoinho  que volta a ser água,  águas turvas e barrentas, águas sem vocação para nada. Não são águas de beber. Não, em dias em que se tem sede de viver apenas levemente. 

 Eu moro bem perto da barragem de Itaipu. Ela nunca transbordou. Só eu.
 
A verdade é que, cada vez mais, não sei o que fazer com o amor que sinto pelos meus mortos, e a raiva que sinto por mim. Como se chama esse jeito de amar sem ser correspondido? Alguém sabe? Se souber, me falem. 
Porque o diagnóstico de uma doença pode começar exatamente pelo nome. Outro dia, conversei com Silvana. Ela me disse que a cura dessa doença sem nome, vem  a ser o substituir o outro pelas lembranças, que são uma outra forma dele mesmo. Que essa cura é um estado. E que estar curada é aceitar que não tenho mais o amor do outro, mas tenho a imagem desse amor. Essa aceitação seria uma forma de se refazer: sem o outro.  Lindo, mas muito metafísico para quem queria apenas um abraço arrochado.
 
 Deus! Ainda bem: Deus! Deus é o meu refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia. Hoje Ele ainda não me abraçou mas está me esperando.

Eu falava do bilhete que o Ivo me deixou com descrições precisas de tarefas que tenho que cumprir. Se eu não fizer, ele cobra. Tão pouco o que me pede o meu marido Ivo: beijos pro cê, amado da minha vida! 
 Daqui umas três horas, ele vai entrar por essa porta e antes de me beijar ( KKKK)... antes de dizer qualquer coisa,  vai falar assim com aquele vozeirão lindo:
 -Ana, você viu os documentos que eu te pedi?  
 Conheço a fera. Pragmatíssima. 

Tudo começou ontem, com uma visita misteriosa que eu não quis receber. Por que estava escrevendo, claro. 
Nalva subiu as escadas, cansada, e me disse que havia uma mulher na frente de casa querendo me ver a respeito de "querimento". Juro que foi assim que Nalva disse, não estou inventando. 
 Nalva não está nem aí para palavras complicadas. Ela corta o que quer,  acrescenta o que não quer, cria algo que eu nunca ouvi e espera que eu entenda.
 Disse a ela, meio distraida, batucando aqui no computador, sem levantar os olhos do teclado ( pois que só uso 2 dedos) disse  que mandasse a mulher voltar mais tarde, ou que fosse falar com o Ivo. Isso: que fosse falar com o Ivo.
 Pois não é que ela foi? E agora, sem saber exatamente de nada, começo a perceber vagamente de tudo, que esse "querimento" deve ser mesmo um requerimento para requerer qualquer coisa que está requerendo de mim uma mudança de atmosfera imediata. 
Já sinto o frio. 

Para Merô, respondo assim: Menina, você sabe que precisei ir lá no "Vem Comigo"  para saber o que é que você acreditava que não terminava, e que para Deus nada tinha fim?  Branco total.
 
Fui ler o trem de novo. Sabe que tenho dessas coisas? Escrevo tão dolorido que me parece estar parindo um filho. Depois, volto toda hora para lamber a cria. No outro dia, já amanheço parindo outro filho e não me lembro mais do anterior, tão estranho me parece aquele que me saiu das entranhas.

Ah, sim, agora que li, lembrei. Era sobre a crônica que eu escreverei um dia, sobre a Malu Baleia Vidas Secas Mader que habita em cada um de nós. Não sei se terei coragem, ela é linda demais.

 Mas Merô, vamos ao que importa:  Tivemos aqui uma incapacidade involuntária de estabelecer momentaneamente a comunicação. Nossa, que nome pomposo para dizer: eu não me fiz entender.  Deu curto. 
Eu disse que não sabia como aquela crônica iria terminar. E você entendeu que eu dizia que não sabia quando Deus me faria terminar. Assim de terminado, de finado: um dia, vou morrer e em morrendo vou terminar.

 Merô, você não tem culpa do mal entendido. É que sou tão dolorosa nos meus textos que quando escrevo: " vou ali e já volto" todo mundo fica procurando uma pista que leve ao não voltar.

Mas eu volto até a última gota. Eu não sou mulher de estar escrevendo, sou mulher de me derramar em gotas. E que elas sejam homeopáticas
.