Ainda não me Contaram.
Ana Maria Ribas Bernardelli.

Fui procurar os tais documentos que um dia foram do meu pai. Pensa que encontrei? Eu também me pensei organizada por causa daquela teoria psicanalítica que diz que todo ser bagunçado por dentro é organizado por fora. Eu sou exceção. 

Houve uma época da minha vida, em que  tive uma psicóloga para me analisar: eu me sentia tão chic. Ainda não me acompanhava esse sentimento de ligeira inadequação social, comum aos seres celestiais e, portanto, fazer análise, era uma visão puramente freudiana. Ou sei lá o que eu tenha querido dizer com isso.

 Bom, vou explicar melhor:  só  frescura mesmo. Fazia parte da minha agenda: sim, eu também tinha uma agenda. Mas além do "dolce far niente" eu também trabalhava, que nunca fui puramente de vadiagem. 

 Era assim, a sessão de análise,  era assim : -"feche os olhos e imagine um ser vindo em sua direção. O que é que ele diz?
 Ele não me dizia. Era um tormento ter que inventar o que ele me dizia. Mas em compensação, se ela perguntasse o que eu diria para ele a resposta viria rápida:  -"vade retro satanás". 
Logo cai fora.  
 
Essa  ordem de hoje é apenas aparente, mas pelo menos já foi diagnosticada. Caixas e caixas que me remetem a um passado distante: ultrassom da gravidez do meu neto que já tem quase 9 anos, cópias de declarações de renda dos anos 90, exemplares do Jornal Palavra do qual fui cronista ( que saudades, chama eu de novo, Orly!), alguns trabalhos da minha vida acadêmica, e só para encerrar a lista por aqui, todos os certificados de batismo da família. Inclusive do meu pai e da minha mãe. 

Não achei os documentos. Mas no meio de tantos entulhos, achei coisas preciosas. Além daquelas que me fazem chorar, achei outras. Um caderno amarelado escrito assim na primeira folha: 
" Reflexões 
       Anotações
             Conclusões
                    Projeções
                       Divagações
                            Sensações
                                 Opiniões 
                             
                                    MINHAS E DA HUMANIDADE 

                                                             1990/ 1991

Gente, tem coisas lindas aqui, verdadeiros tesouros da humanidade . O único problema é que esqueci de anotar o que era meu e o que era da humanidade. E assim não posso transcrever nenhuma virgulinha de nada que escrevi aqui. Que anta!

  Esta aqui eu desconfio que deva ser de Pablo Neruda porque no ano de 90 eu estava apaixonada por suas palavras pungentes: "Quando você se vende ao rio, tem que gostar do rio."

Exatamente. Eu me vendi a vocês porque gosto de vocês e porque, enquanto escrevo, faço uma obra secreta, tão secreta que nem eu mesma sei qual é. Ainda não me contaram.