O Duro da Pedra.
Ana Maria Ribas Bernardelli

O primeiro pensamento foi: "está chovendo." E o segundo: "Senhor, protege o Ivo, está chovendo, ele corre, e os treminhões de cana."  E aí já era tarde. Eu devia ter ficado só até: "Senhor protege o Ivo está chovendo." De um susto só, e depois o nada de novo. Mas me descuidei, e aí, já era tarde.

Era tarde, mas também devia ser hora. O sono me tomou a noite toda, e eu nem vi que ele me tomara, com esse jeito de eternidade tombada.  Que acaba, toda manhã,  às sete horas. Vi quando levantei a cabeça do travesseiro, e minha cabeça ainda continuou lá, no redondinho da espuma visco-elástica. Avancei de novo: podia ter ficado só até no redondinho.

Tenho manias de travesseiro e o Ivo já percebeu,  ele que é desligado de caminhos que levam à abstração,  já percebeu. Não acreditei quando ele me disse daquele jeito seco: "Ana você compra travesseiros para recuperar o sono que perdeu."  Compro travesseiros sim, é verdade. Tenho vários, de todas as alturas e tamanhos. Tenho um, enorme,  que me abraça o ombro, a cabeça e as pernas. É verdade. Que perdi o sono não,  não é verdade.  Durmo um outro sono, e só aquele, anterior, foi para sempre, perdido. O Ivo viu! Ivo viu a uva.

 O sono tem  modulações e profundidades: tem o duro da pedra e tem  a leveza da pluma. O que eu perdi, foi a leveza da pluma. Mas também perdido por perdido, truco: tenho que convir que achei um jeito de ser mais alerta. Nesta vida, tudo o que fica perdido encontra um outro jeito de aparecer, sob outra forma.
 
Esse estado de alerta máximo que se instalou em mim desde 1995 é a minha leveza de pluma perdida. E me faz ver o avesso das coisas, esse avesso que conto aqui, como se fosse o direito. Agora você sabe  porque se percebe tão avessado quando me lê.  

Levanto-me às sete horas por isso, porque essa é a minha hora trágica. Tenho dois caminhos:  o primeiro se abre, sem que eu tenha que dizer: abre-te Sésamo.  Abre-se sozinho. O segundo, eu escolho abrir, e fazer todas as coisas chatas que precisam ser feitas, para não perder de vez o fio e a meada da vida.
 
Sete horas é a hora em que o menino espia o mundo com um olho só, e então vem o segundo, e se abre de teimoso, e tudo fica acordado,  bem acordado no corpo todo.
 O corpo todo imóvel, se fingindo de morto, mas sentindo tudo, os dois caminhos latejando na cabeça, sem necessidade de tomar neosaldina, só a resolução.
 
Fico com os dois, por alguns segundos: guardo na mente as coisas que precisam ser feitas hoje, porque o pentágono exige de mim que eu as faça; coloco embaixo do travesseiro e guardo, enquanto  vou pelo outro caminho, o caminho que se abre sozinho.
 
Esse é sempre novo, mas ainda assim eu o percorro de olhos fechados. De olhos fechados vejo os dias que já foram e de tal maneira se foram que, para sempre se forão. ( neologismos sem aspas?).  Vejo as pessoas que, para não me entristecer, disseram: " vou ali e volto já" - e não voltaram. Eu as perdôo só um pouco, porque sabiam que não voltariam, mas conservaram a piedade. Vejo aquelas que não disseram nada e se foram sem dizer nada. Irremediavelmente.  Mas no segundo em  que se foram, cristalizaram. Encantaram. E eu fiquei ligeiramente encantada, porque em elas se fondo (  os neologismos aqui dipensam aspas, não esqueça)- em elas se fondo, eu também me fui sem nunca ter-me ido.
 
Há tantos anos eu não me movo de mim. É por isso que sete horas é  a hora trágica - a hora em que a minha parte que se cristalinizou precisa voltar a ficar opaca, antes que eu saia por aí mostrando as vísceras. Demora um tempinho mais embaixo dos caracóis dos meus cabelos tanta história para contar de um mundo tão distante.

Deus! Deus é o meu refúgio e fortaleza, socorro bem presente, mesmo na angústia cristalinizada. Deus permitiu que a mulher de Ló virasse uma estátua de sal, e  permite bondosamente a cada manhã que eu volte a caminhar, a viver, a me mover como se movem os seres moventes.

Ser movente. Ser movente em direito civil é tudo o que não é gente e ainda assim,  se move. Deveria haver um direito civil para os bichos porque no nosso, só consta que eles são seres moventes para fim de que, em se movendo para longe de suas casas, ninguém se arvore o direito de deles se aposssar. 
Mas não consta que eles são seres com vontade própria. Que eles são uma forma de gente desamparada. Gente desamparada, pobre, sem boca, sem voz, com um rabo que se move alegremente, nessa alegria pura de existir tão puramente. 

Os meus bichos esperam que eu lhes seja bicho a cada manhã. De manhã até que consigo. A tarde estou um pouco menos humanizada e não consigo ser-lhes o bicho que lhes fui de manhã. 

Às sete horas da manhã, tenho o controle de alguns fatos, mas não tenho de outros. Por exemplo:  ter escolhido que essa hora seja a hora de levantar e então, enfim,  me levantar.
 Quando não valorizo, quando uma sombra escura espreita a liberdade de ir,  eu  penso: como seria, um dia, se me faltassem  pernas? Então digo em alta voz : "Deus obrigada por eu poder ir." 

Mas ainda não me vou. Porque só o fato de dizer: "obrigada por eu poder me ir" já se tornou perigoso; desse perigo que é pensar nos  que não  podem e lhes sentir a imobilidade emprestada por um segundo. Cristalinizei de novo. Não era hora de afundar a cristalinização.  

Então para terminar de vez é  assim:  acordo às sete horas por causa do meu relógio bio-psiquíco-social.  O bio me chama para a vida, essa vida mais urgente que diz: quero café; o psiquíco por causa dos mortos e dos vivos, que se misturaram em mim, mas ainda se discernem uns dos outros, quando os vivos dizem: "mãe, cadê meu tênis?" e os mortos não dizem nada; e o social, porque marquei - por exemplo - marquei hoje com a manicure às 10 horas para fazer unha. 

A vida é um concreto que se abstrai, a voz de fora e a voz de dentro se misturam, e ninguém sabe, só aquele que quer saber. Que faz questão de saber. Para acordar é só deixar a voz de fora falar mais alto. Deixar que os mortos durmam em seu berço e aceitar o fato de que você não é a mão que embala o berço, mas Deus é. 

Hoje eu sou um pé que precisa de manicure. Acho feio dizer: vou ao pedicuro! Tão pernóstico me parece ser a palavra pedicuro. Deve ser  por isso que chamam os pedófilos de pedófilos. Porque pedófilo deve ser  parente distante de pedicuro.

Bom dia!