Que saudades de você, meu pai!
Ana Maria Ribas

Nunca consegui estabelecer um diálogo puramente afetivo com o meu pai. Na infância, a maior expressão de amor de que me lembro,  eram as suas grandes mãos guiando as minhas, na tarefa tão difícil de  escrever o meu primeiro nome. Três letras: Ana. Breves momentos. Momentos que se eternizaram dentro de mim, tão bom era o sentimento de ter  a mão de meu pai conduzindo a minha.  Lembro-me ainda. Fechando os olhos posso sentir  sua mão dura sobre a minha, pequena e indecisa. 

Nesse período, morávamos numa quase fazenda, um "patrimônio" de 300 habitantes. E não havia cinema. Mas meu pai montou um cinema. Tinha uma Super 8. Só sei isso. Era uma super geringonça que ele manuseava tão bem, passando filme aos sábados para todo o povo daquela terra. Depois, veio uma máquina chamada "patê babí" ou sei lá o quê isso significasse. Ele dizia assim  mesmo: patê babí."  Os filmes chegavam em grandes latas redondas e não eram escolhidos. Os que viessem, seriam festejados.  Quem trazia era  a velha jardineira. Na sexta feira, esperávamos ansiosos, porque à noite teríamos uma sessão privada, em primeira mão, para a família.  Ele nos explicava o filme e chamava a nossa atenção para as melhores cenas. Se considerasse haver cenas impróprias, acendia a luz e rodava a máquina. Recomeçava do ponto em que o beijo já tinha acabado. E só nos restava adivinhar, a mim e a meus irmãos.

Da adolescência, um lapso. Morávamos na mesma casa, almoçávamos à mesma mesa, comíamos o mesmo arroz com feijão de cada dia, mas ele se tornou tão arredio. Ou eu me tornei mais inventiva? Embora eu não entendesse dessas sutilezas.

Por essa época, as invencionices de papel e caneta já começara. Eu compunha histórias e elas eram sempre dos outros. A minha seguia, sem pressa e sem mistérios.  O que era um pai arredio? A proximidade que nos possibilitava o  amor de maneira mais efusiva, seria apenas um detalhe. Eu tinha um pai. Tinha um pai para os momentos de defesa e de ataque e isso me bastava.

Quando mais jovem, convidaram-me para ser miss qualquer coisa. Talvez simpatia, sei lá. Não me lembro. Mas lembro do meu sentimento, ao ver a comissão organizadora do tal concurso vir até a minha casa, pedir para eu representar determinado segmento da sociedade. Eu tinha um pai! Ele de braços cruzados, tímido, ouviu o convite, e respondeu do seu jeito humilde e puro: " se for coisa de gente de bem, ela pode ir. Tem o meu consentimento." Era uma palavra tão em moda: consentimento. Sim, eu tinha um pai! Era tanto o meu orgulho. Para que  precisaria que ele me colocasse no colo,  me beijasse, me abraçasse, me olhasse nos olhos, mesmo que fosse por um breve instante eterno? 

Dos meus namoros, pouco participou. Não dava pitaco. Tão grande era a figura materna, que a paterna se encolheu em assuntos dessa natureza. Não, não é nada disso. Quero fazer um retrato fiel do meu pai: ele não se intrometia simplesmente  porque não vivia, nem por um momento, a vida de seus filhos, em nenhuma circunstância. Ele vivia a sua própria vida. Nunca palpitou, nunca quis saber, nunca aconselhou, nunca disse "eu penso que". Ele não pensava. Não sei se por altruísmo, não sei se por discrição, não sei se por comodidade. Eu poderia namorar, noivar e casar, com quem  bem entendesse.  Meu pai permanecia indiferente. Quando namorei um funcionário público, ele não disse nada. Quando namorei um desocupado, ele também não disse nada. Quando namorei um médico, ele nem soube que era médico, senão depois quando machucou um dedo. Um dedo de prosa, pouca intimidade, nenhum segredo: assim era meu pai.

Adivinhávamos a vida. Não havia orientação. Nosso  pai passou por nós como uma figura mística: um tanto quanto protetora  mas sem nos tocar. Como os santos de pedra da igreja católica. A urgência de ser era tanta, que eu e meus irmãos, cada qual a sua maneira, nos virávamos como podíamos, e sucumbíamos aos mistérios nunca dantes desvendados, em silêncio. Não houve orientação sexual, profissional e nem espiritual. Cada qual seguiu o seu norte sem bússola, e pela graça de Deus, todos nos salvamos. 

Da minha maturidade plena não teria o que falar acerca de  meu pai: ele se tornara dispensável e eu me tornara por demais ocupada com marido, filhos e o deslumbramento da vida em sociedade. Um dia eu fui deslumbrada! Mas houve um tempo em que, no galope da vida, meu cavalo, branco como o de Napoleão  arriou e ficou pálido:  descobri que meu pai se tornara meu filho.

Foi quando minha mãe morreu deixando o Dudu, um velho cachorro pequinês e meu pai, já entrado em anos, para eu cuidar. Ela nunca me disse: cuide de seu pai. Meus irmãos nunca me disseram: cuide do nosso pai. Mas Deus me disse: cuide do seu pai, como se estivesse cuidando de mim.

Difícil tarefa. Medo, pânico, sentimentos de inadequação que ora se transmutavam numa doce bondade, para logo depois me consumir em séculos de infinita perplexidade. Meu Deus, o que é mesmo esta vida?

Ficamos juntos pouco mais de 2 anos. Esse não é um período do qual gosto de me recordar. Porque tenho a flagrante sensação de haver falhado. Eu acertei na grandeza da visão,  mas falhei nas miudezas de cada dia.  Falhei no amor em conta gotas, naquele que precisava ser dado em doses homeopáticas e não derramado abruptamente, de vez em quando, para acalmar as minhas culpas. Ele recebia um e outro, sem reclamar. Se eu o amava, ele me amava; e se eu não o amava, ele me amava igualmente. Chorei muitas vezes quando compreendi que os meus sentimentos por ele estavam doentes. O filho cuidador tem uma tarefa obscura, não bem explicitada.  Nem tanto pelo trabalho, mas pela súbita inversão de papéis. Ver meu pai depender de mim para as tarefas mais íntimas,  custou-me momentaneamente a saúde e tivemos que contratar uma enfermeira. 

  Mas até o fim ele ficou em minha casa. O fim: Falávamos de tantas coisas, mas eram coisas de fora, nunca de dentro. Quando viajei para a Espanha, levei uma filmadora e fui desbravando o sul do país até chegar à aldeia em que ele nasceu: HUENEJA, perto de Granada. Que noite aquela! Eu estava em Hueneja, na casa em que meu pai nascera, aos pés do Monte Nevado. Fiz tudo pensando nele: queria lhe dar a alegria de rever a sua terra, as suas gentes, ainda que fosse pelas minhas narrativas e pela minha câmera. Na volta, a surpresa: ele não esboçou reação. Assistiu alguns minutos do filme,  e depois pediu para descansar. Estava cansado meu velho pai.

No ano de 2001, a introspecçao se agravou. Não perdeu a lucidez, pelo contrario. Acho que ela lhe foi excessivamente exagerada.  Compreendia a vida e pedia a morte. Pediu para ser batizado nas águas, por imersão quando eu lhe disse que assim o tinha sido Jesus.
 
No dia 20 de novembro, um domingo, sadio e lúcido, segurou forte em minhas mãos e me pediu: Canta! Escolhi o que me veio à mente: " Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura nas mãos de Deus e vai... se as tristezas desta vida, quiserem te sufocar, segura nas mãos de Deus e vai." Enquanto eu cantava, ele balançava fortemente as minhas mãos como se estivesse se despedindo. Era de tarde. Naquela noite de madrugada, ele foi.

Que saudades de você meu pai! 

* A foto mostra meu pai e seus filhos.