A Noiva, o Cawboy e o Cavalo.
Ana Maria Ribas.


Soube por outros que você tem estado cada vez mais introspectiva, mas a introspecção não me foi novidade: a sua infância já prenunciava. 

Seu corpo de menina se resumia em grandes olhos cor de mel que espantados, olhavam.  Mas era um espanto feliz. Um espanto feliz é assim como quando a menina, é a noiva do cawboy - mas nem  se lembra de que há outras três - e sai cheirando o mundo sem nariz, tocando o mundo sem mãos, ouvindo tudo sem ouvidos, sentindo tudo  com os olhos. Apenas com os olhos.  

Você chegava e não dizia nada. Só sorria e olhava. E apesar de ser a sobrinha do meio, a mediana, entre grandes e pequenos, era quem se abaixava em direção aos menores e aos maiores, ensinando tudo quanto aprendera nessa sua vida de ver. Tão grande era a visão espantada que via tudo, para depois ensinar aos outros que não viram nada, ocupados demais que estavam em ser crianças. 

Seus olhos eram a porta de entrada dessa vida já um tanto quanto solitária, embora ainda povoada pelos primos à  volta. Uma vida sem saida porque lhe faltava o entusiasmo pela boca. A boca para nós, -esses espantados da família Ribas- sempre nos foi um grande problema. Sentimos com os olhos, portanto, falamos com os olhos, compreendemos com os olhos. E tudo é tão claro. Como podem as pessoas não entender? 

Quando jovem, estudiosa que você sempre foi, enfiou a cara nos livros e se esqueceu de olhar o mundo. Isso salvou a sua juventude. Por alguns anos, você foi tão normal. Teve apenas um namorado e ele também tinha grandes olhos mas não eram espantados. Eram olhos de quem vê com discrição, com economia e ainda  só vê o que é belo, o que é bom, o que importa  ver nessa vida de janela redonda. A mesma paisagem tranquilizadora.

Deus sabia que você precisava desse homem  bom, puro, econômico,  preparado para lhe conduzir pela mão. A noiva do cawboy tornou-se esposa, e ser criança passou, como passou a música do Chico Buarque: " agora eu era herói, e o meu cavalo só falava inglês."

Não sei quando o mundo percebeu que  o  seu cavalo começou a falar inglês, como o desta tia que lhe escreve. Que coisa! a humanidade nunca entendeu muito esse nosso jeito de falar, com olhos grandes de cavalo inglês.   Eu sempre percebi que o meu cavalo era nórdico. Um cavalo nórdico poliglota que nenhum humano entendia. Eu entendia de acumular coisas no pensamento. Essas coisas que eu acumulava eram da humanidade toda, mas de repente se tornavam tão minhas, como se uma mão invisível me jogasse uma petição  bem no meio do peito e eu tivesse que dar a sentença.  

Por caminhos que nem sei, embora todos saibamos, nos perdemos entre montanhas de cifras dos outros, e cifrões que contabilizaram danos de grande monta,  de ordem bem mais dolorosa.  

Já faz tempo que não lhe vejo. Só por fotografias do orkut de sua filha. O olhar já não me pareceu tão perplexo, mas levemente resignado. Dessa resignidade que sabe que os vivos nada sabem e que os mortos, mesmo que saibam, nada contarão.
 
Fiquei tão feliz ao ver que sua filha se salvou da síndrome adquirida de  grandes olhos de espanto. Sua filha tem os olhos do pai. É uma menina feliz, cheia de vivacidade. Daquela vivacidade boa que só vê o bom da vida, e quando enxerga o ruim, logo esquece.

Outro dia, ela deixou um recado para a minha filha (que tem a síndrome sob controle) -  ela escreveu assim para minha filha: "tia, recebemos a receita do pão e já fizemos três vezes. Ficou bom. O problema é que a família dinossauro pensa que é para comer tudo num dia só e estamos engordando." 

Tão bom ter uma filha que chama a família de Família Dinossauro. Uma filha que faz piada, que consegue rir de si mesma, dos outros, e das trapalhadas da vida. Uma filha que só vive e cresce. Se lhe perguntassem: - Natália, o que vc faz aqui: Ela responderia: - Eu vivo e cresço.  

Mas sobre você eu soube que  tem estado tão calada. E que, quando fala, por vezes, se remete a um passado que nunca passou. A momentos que marcaram com a profundidade do aguilhão  ou com a leveza da borboleta. Não importa, foram marcas que ficaram. 

 Temos essa coisa de segurar o passado pelo laço como quem segura um cavalo bravio: sob certo controle, mas sempre temendo que, a qualquer hora ele nos escape.  

Também soube que você se isola para ler muito. Nisso também você vem logo atrás de mim. Só lhe falta escrever. E é para isso que  estou lhe escrevendo: para sugerir que você escreva. Escreva para si mesma, escreva para os outros, escreva para Deus. 

Quando eu descobri esse Deus, ele ainda era desconhecido em nossa família.  Eu o apresentei a quase todos e sua mãe disse: "Que bom, muito prazer!" Em seguida, você apresentou-se de maneira espontânea, e quando eu soube, vocês já eram íntimos. E isto, esse ISTO tão grande lhe salva "para sempre". 

Mas escrever, poderia salvar agora.  Escreva! Você é advogada de respeito, venceu a timidez natural que lhe fazia ficar vermelha, passou a recitar petições cantilenosas aos juízes da vida, mas  a mudez continua. Escrever lhe daria voz. 

Há pessoas que pintam para fixar na mente a paisagem que merece ser eternizada;  outras que correm e viram atletas para fugir de si mesmas, da mesmice, da solidão;  outras que sobem montanhas, porque a planície não as comporta mais; e outras que escrevem para deixar sair o passarinho da vez, na gaiola da prisão. 

Somos um pouco dos três: somos o pintor, o atleta e o escritor. Escolha um dos três, ou fique com todos. Isso será também uma grande salvação. A salvação diária nós que já ganhamos a eterna.

Agora que vivemos por fé o equilíbrio fica ainda mais precário: porque nesse viver por fé só cabe o olhar de dentro. Por isso, não temos mais tempo a perder lá fora e nos debruçamos definitivamente sobre a Bíblia, sobre os livros, esses livros que falam conosco de forma mais íntima e eficiente. Danou-se de vez a tão sonhada normalidade.

Você sempre foi loura como a família da sua mãe, alta como a família de sua mãe, magra como a família de sua mãe. Tudo por fora, em você, era a família de sua mãe. Mas por dentro, era a nossa família cuspida e escarrada sem tirar e nem pôr. Seu pai vai a frente de nós duas, na estrada de Santos, e tomara que ele nunca mais derrape nas curvas: tão grande seu pai, tão equivocado, tão desamparado, tão sedento de Deus, e tão solitário. Eu amo seu pai! E amo você! 

O que fazemos com isso? O que fazemos com a grandeza, com o equívoco, com o desamparo,  com a solidão, com a sede, com tantos sentimentos desencontrados? 

Tenho uma sugestão.Ofereçamos a Deus. Deus é um Deus econômico: recebe tudo e não despreza nada. Com cinco pães e dois peixes alimentou uma multidão.
Eu  sempre penso, nesse meu pensar apaixonado, que o pão e o peixe que o menino ofereceu a Cristo, eram amanhecidos, sem o brilho das coisas que se desejam.  E Cristo recebeu, processou, abençoou, distribuiu e alimentou.

Ele pode fazer o mesmo com a parte espantada de nossa família. E saber disso também nos salva.