VÁ DORMIR TOTÓ.

Ana Maria Ribas

Nada do que escrevo para você é inventado. Tenho muitos anos de caminhada para precisar inventar, sejam histórias, sejam sentimentos. É um sentir um pouco ampliado, e as histórias são universais, porque abrangem o mundo.

O meu sentir é assim como quando o povão vai na lotérica e pergunta:
-Está acumulado?
-Faz tempo, responde a vendedora.

É assim. Uma mega sina acumulada pela sina dos outros, e pela minha própria sina. Uma mega sina que ninguém leva, ninguém ganha, ninguém compra, ninguém aceita doação, e vai ficando para mim.
Antes de morrer, quero me livrar disso: não gostaria que meus filhos herdassem esse sentir trilionário.

Mas, eu dizia: as histórias que escrevo aqui não são inventadas, são reais. O meu sentir e o sentir dos outros há muito tempo se misturaram em reflexões, constatações, ponderações que me vêm de maneira natural, em séculos de infinita doçura e amargura.
Não necessariamente nessa ordem, e com uma certa alternância que, às vezes, se misturam. Há anos de completa amargura, mas também já houve anos de extrema doçura. Enfim...!

Quando digo "enfim" quero dizer que o assunto não se esgotaria, mas preciso dar um fim. Então: Enfim.

E agora que você tem a minha palavra de que estou falando a verdade, vou lhe dizer a que vim, nesta linda manhã de sol.

Vim dizer, e em lhe dizendo, digo a mim mesma, que ontem recebi três recados de Deus. Os recados de Deus são sutis e é por isso que poucos escutam. Deus fala sugerindo. A sugestão é um sussurro tão gentil que só consegue captar quem não tem ouvidos moucos. Questão de empenho, e treino  para a humildade, que a gente aprende a ter a custa de muita porrada ou do silêncio de Deus. Prefiro a porrada. Enfim...!

Recebi os recados e assinei o registro que comprova o recebimento. A assinatura chegou ao céu no exato instante em que compreendi.

Tarde demais para alegar desconhecimento.
Hora do compromisso!

Eu não digo que Deus é um riso? Mas ontem foi um riso de relâmpago: breve e claro, iluminando tudo à minha volta! Depois, o silêncio das tempestades que se vão, sem ter sido: graças a Deus!

Pode ir, Deus, já compreendi.

Uma oração: Deus não deixe eu me dispersar nesse contar. Quero ser breve e clara como o Senhor. Amém!

Primeiro recado:

Recebi ontem a tarde.
Já contei lá no texto "A Galinha dos Ovos de Ouro". Deus me disse através do meu próprio pensamento - que sei que não é meu porque o meu existe e o dele cintila. Deus disse assim: "As Palavras estarão sempre aí, mas você escreve de afogadilho porque pensa que elas são suas, e vão fugir dos seus dedos. Mas elas sou Eu. “No princípio era o Verbo”, lembra-se?”

Tradução: Não precisa escrever com tanta voracidade. Eu sempre estarei em palavras disponíveis para você.
Captei!

Segundo recado:

Esse precisa de preâmbulo.
Em obediência ao primeiro, deixei de escrever e fui ver um filme com o meu marido. O filme se chama "O Resgate do Campeão." É uma história verídica. O Réporter americano Erik Kerman Jr. é o grande protagonista. Ele corre atrás de uma boa reportagem e descobre um mendigo que supostamente havia sido um pugilista famoso. Sem conferir profundamente os fatos, acredita na história do mendigo e libera a reportagem. A história era uma farsa e o nome dele vai para o limbo.

O filme termina com Erik Kerman Jr. fazendo uma retratação. Vou transcrever as suas palavras: "Um escritor como um pugilista, precisa ficar sozinho. Ter as suas palavras publicadas é como entrar em um ringue. Coloca o seu talento em evidência e não há onde se esconder."

Quase cai de costas, pela segunda vez. Fiz o Ivo congelar a imagem e copiei o telegrama.
Captei de novo.

Tradução: Fique sozinha e se abasteça antes de entrar no ringue das palavras publicadas. De que adianta colocar o seu talento em evidência se você não tiver onde se esconder quando descer do ringue? Eu sou o seu esconderijo mas você tem se perdido de mim.

Tenho sempre me escondido em Deus, mas para isso sempre precisei estar sozinha. E ultimamente tenho estado pouco.

Estava registrado o segundo recado e o aviso de recebimento devidamente assinado.

Terceiro recado:

Veio no rastro do segundo, nesta noite que acaba de ser dia.

Foi um sonho: Estava em uma igreja ouvindo uma pregação. Mas havia um cachorrinho no canto esquerdo, bem à minha frente. Um poodle branco. Eu amo bichos, amo cachorros, amo poodles. Meu olhar se desviava, ora para o púlpito, ora para o cão. Dispersiva. De repente, o pastor interrompeu o sermão e disse com voz levemente irritada: "Ana, preste atenção na Palavra, esqueça o cachorro."

O sonho acabou ali.

Deus me deu o dom da interpretação de sonhos. Não todos, mas alguns ele interpreta para mim. Dom é isso: um presente de Deus.

Antes de interpretar, quero dizer que o sonho foi tão nítido que ao acordar o primeiro pensamento foi: "que vexame, meu Deus." E o segundo foi: " mas quando aconteceu isso?" E o terceiro foi: "Ah, Deus!"

A interpretação: O cachorrinho que eu observava é a minha função de escritora. A Palavra é a Palavra de Deus da qual tenho me descuidado ultimamente. E se eu não me consertar, a repreensão será em público. De que maneira? Deus sabe.

Deus já me pegou no contra-pé de tantos jeitos, já me trouxe pela orelha, já puxou o meu cabelo, já me deu muitos beliscões. Não quero apanhar mais. Não de novo.

Até que eu sinta que tenha crédito com ele estarei em débito com vocês: penso em liberar apenas um texto por dia.

Meu cachorrinho está muito metido a besta. Vá dormir Totó.
Eu vou me esconder um pouco no silêncio do colinho de Deus.