UM CHOQUE, UM APRENDIZADO (2)


         Freqüentava um curso todas as segundas. À noite. Algumas vezes dava carona para uma amiga; outras, ia e voltava sozinha. Gosto de dirigir sozinha. Para mim sempre é um momento de reflexão. Mas esta cidade onde vivo, já foi calma, amigável segura. Mesmo assim sinto-me mais segura em SP. .Pode parecer paradoxal, mas lá estão minhas raízes, o meu chão, minhas referências.

         Naquela noite, eu estava preocupada e um pouco desatenta. Um pouco. Não o suficiente para não perceber que alguém se aproximava do meu carro. Estava na fila do meio e o sinal estava vermelho. Segurei o volante com os dois braços esticados e fiquei imóvel. Não tive nenhuma outra reação. Descrever, não é possível. Ninguém sabe o que fará num momento de perigo, quanto tempo levará para tomar uma decisão, nem qual tipo de escolha fará. Faz pouco mais de um ano. Mas meu coração dispara ao lembrar. Era um jovem alto e magro. Com uma arma enorme. Não entendo disso. Não saberia descrever, dizer qual marca ou coisa assim. Tenho essa falha. Sou pacifista, em todo o período em que tive comércio nunca vendi nem sequer um broche com o desenho de uma arma, com a imitação da pele de um animal, com caveiras, com qualquer símbolo relacionado a algo que destoa de minhas convicções. Ele aproximou-se da janela, apontou a arma para mim e disse para abrir, que era um assalto, é isso mesmo, ele disse.

            Eu não me mexi, se há uma sensação que está fora do tempo, em que o presente é apenas o presente, é essa. E esse presente é eterno, infindo, é tudo. Percebendo que eu não fazia nada, não abria a porta, começou a bater com a arma no vidro, penso que tentando quebrá-lo, mas o vidro não quebrou, ele não atirou, nunca vou saber por quê...

           O certo é que, naquela eternidade, alguma coisa dentro de mim foi se recompondo aos poucos e lembro-me de ter pensado que a minha hora havia chegado, que iria morrer ali mesmo, mas que não abriria a porta. Acreditei que morreria de qualquer jeito e fiz minha escolha. Seria rápido e ali mesmo. Nada de ficar nas mãos de um bandido por horas, passando sabe-se lá pelo quê. Aliás, sabe-se muito bem. Continuei sem me mexer, esperando. Será que fiz uma prece?   Talvez. Quanto tempo durou? Não sei, instantes... De repente, chegou a reação instintiva, o sentido de auto-preservação, a tentativa de salvar-me, o amor à vida. Saí do transe, da estupefação, da paralisia. Gosto da emoção de dirigir, já tive jipe com câmbio seco e faz pouco tempo que dirijo um carro automático. Mas veio a lucidez de que eu poderia arriscar arrancar, porque, olhando para frente, vi que tudo estava livre. Não percebi o que ocorreu ao meu redor nesse meio tempo. Então, conservando a mesma atitude imóvel, pisei no acelerador com toda força (ainda achando que um tiro poderia me acertar), saí acelerando sem parar, sem olhar os sinais, sem saber direito o que estava fazendo, até estar bem longe, sentir que o perigo havia passado. Naquele momento sim, tenho a clareza de ter pensado em Deus, de ter agradecido pela vida e de ter pensado que Ele devia ter ainda algum propósito para mim, por ter-me deixado ainda por aqui...