COISAS QUE UM CUBO ENSINA.
Ana Maria Ribas.


Há muito tempo, eu sei que nem sempre o que parece ser verdadeiramente é. 

E o que é - pode ser sob vários ângulos de verificação e relatividade. Ou seja: nada é absoluto. A verificação e a relatividade é determinada pelo  observador. 

O problema é que somos treinados para olhar de um jeito só. E normalmente, com um certo estrabismo preocupante. Olhamos daquele jeito enviesado, e se alguém quer nos corrigir o viés, refutamos  ajuda.
 
Também somos míopes: só enxergamos de perto. E isso a história nos ajuda a verificar.  A reconstrução da história de um povo é comprometida pelo estrabismo e pela miopia coletiva. Quem conta, conta do seu jeito míope, e esse jeito é constituido pela informação que recebeu, pelo ângulo que escolheu enxergar e pela abertura da lente: quanto mais fechada, mais absoluta; quanto mais aberta, mais relativa. Sem, esquecer que estamos falando de um observador estrábico.

Vou traduzir  de um jeito sem muitas firulas porque já percebi que você gosta de uma leitura ágil,  com certo humor, uma dose de introspecção e outra de objetividade. Exigente você, mas tentarei. 

O tema de hoje é:  tudo tem -pelo menos- dois lados. E a humanidade tem o costume de mirar apenas o lado que escolheu. A mirada é curta, unilateral e pouco profunda, além de míope. Miopia é a incapacidade de ver com nitidez as coisas de perto.

  Do ponto de vista histórico,  carregamos essa carga genética: estrabismo, miopia e com o passar do tempo, a doença do alemãozinho se instala, fecha o diagnóstico e babau. Se não houve isenção no passado, de memória recente,  no futuro, a tendência será uma generosidade nebulosa, confusa e equivocada.

E assim nascem os mitos: o mito ganha força quando todos resolvem mirar de um lado só, enxergando mal pra caramba de perto, e com potencial para Alzhaimer, de longe. Triste prognóstico, do qual poucos humanos escapam. Bom para os mitos, ruim para nós.

Agora, vamos aos fatos: ontem recebi um telefonema pedindo para eu escrever sobre uma figura humana  que existiu em nossa cidade há cerca de 12 anos atrás. Chamava-se Irmã Ana e foi uma religiosa da ordem das Filhas da Caridade, que viveu aqui desde os primórdios. Uma polonesa cruzeirodoestana.

Irmã Ana foi realmente uma figura excepcional: dedicou toda a sua vida aos pobres.  Não foi uma religiosa típica de claustro, de convento, de festas para angariar fundos, de envolvimento com a cultura, ou de gastar tempo em naves de igreja.  Foi uma religiosa de favela e de carroças. Usava o hábito tradicional das monjas e em dias de chuva colocava uma galocha, e uma capa preta de plástico, mas não descia da carroça. Que a levava para cima e para baixo, sempre trotando com certa pressa,  a serviço de um de seus pobres. 

Acostumados que estávamos a essa figura estranha, uma monja tremulando ao vento em nossas ruas, a bordo do mais velho modelo de carroça,  ela não nos chamava atenção. Apenas dizíamos:  "lá vai a irmã Ana." Esse era o nosso pensamento acostumado.  Nem mesmo a excepcional figura humana recebia uma atenção maior dos poderes constituidos. Naquela época, não havia programas sociais como os que existem hoje.  Irmã Ana era uma madre Tereza sem holofotes. A nossa solitária madre Tereza de Calcutá.

Quando recebi o pedido para escrever, aleguei o tempo exíguo.  Mas eu sabia que, como tudo tem dois lados, eu mostrara apenas o que me convinha. O outro era: "eu não quero escrever." Não porque essa pessoa não merecesse a minha homenagem. Não porque escrever sobre ela me fosse uma tarefa difícil: coisa de cinco minutos me bastariam para dar conta do recado.

Mas recusei  por não compreender: pareceu-me uma afronta para com a memória da irmã Ana, que várias pessoas pudessem dizer assim: "eu tenho aqui um ofício das Congregação das Filhas da Caridade  e elas querem saber porque você escolheu a irmã para dar nome à escola especial" ( escola especial do qual fui diretora durante 20 anos).
 
Meu pensamento imediato foi: não vou poder publicar o pensamento imediato. Mas a  irritação foi visível: como alguém poderia ousar perguntar por quê Irmã Ana foi escolhida? 

Irmã Ana foi escolhida pelo óbvio ululante, porque ela foi diferente de todos os seres humanos e de  todas as demais filhas da caridade que passaram por aqui. Porque ela dedicou-se integralmente à missão que escolheu viver. Ponto final.

Do outro lado minha amiga, educadamente,  tentava me acalmar: -Não, Ana,  sabe o que é: é porque  estão fazendo um levantamento de todas as religiosas que deram nome a ruas, escolas, instituições e precisam de um papel oficial da escola com o histórico.

-han, han. 

A  explicação só fazia aumentar minha irritação: enquanto ela vivia,  ninguém veio  verificar o nobre trabalho que  fazia? - eu me perguntava. Porque se soubessem, não precisariam perguntar. - eu me respondia.  Mas agora, morta há mais de dez anos,  querem um papel timbrado narrando o histórico da finada? Para  a posteridade?  Para a galeria dos que foram excessão? 

 Uma excessão que na época incomodava, tantos eram os pobres na porta, mas hoje está prestes a entrar para a história como um retrato suave na parede amarelada do tempo.

 Tudo bem, eu sei que é assim que se preserva  a cultura de um povo e consequentemente a sua história: escrevendo. Mas que bom seria se não apenas escrevêssemos a história, mas também ajudássemos a fazer essa história quando ela nos parece digna de figurar numa galeria no futuro. 

Que bom!

Por causa da minha amiga, e por causa  da doce lembrança que me ficou de irmã Ana, escrevi. Frases curtas e contundentes, algumas das quais trancrevo aqui: 

"Ela não foi escolhida por viver no átrio exterior do templo. Raramente via-se irmã Ana no átrio exterior do templo porque aonde  estivesse, sempre estaria no lugar santo ou quiçá no lugar santíssimo.
Ela não foi escolhida por estar entre nós. Foi escolhida por estar acima e além de nós. 
Ela não foi escolhida por isto ou por aquilo. Foi escolhida porque Deus a escolheu. Deus mesmo a separou  entre as mulheres, cheia de graça como Maria, preciosa como Ana, diligente como Rute, profeta como Débora, linda como Esther.
 Ela foi escolhida por ser a serva do Senhor." 

O fato objetivo que narro, nesta manhã, foi esse. Mas, lembrem-se os  lados de uma verificação precisam ser relativizados antes da síntese. Teria eu feito a relativização? Ou só a síntese? 

No hora do jantar de ontem,  comentei o episódio com o Ivo. Ele me disse: -"Ana, Irma Ana ajudou a muitos. Mas entre esses muitos, alguns se aproveitaram da bondade dela,  outros  se encostaram nela e deixaram de trabalhar."
 
Ou seja, viraravam vagabundos. Pobres, esfarrapados, maltrapilhos, mas vagabundos. A comida chegava de qualquer jeito, o remédio também, a roupa também. Ela tirava do corpo para dar: consta-se que nem pijama tinha. Os pobres levaram os seus pijamas e os seus cobertores. 

A idéia começou a me incomodar. Fui verificar in loco, no rastro de alguma coisa que me pudesse acalmar.  Gosto de sínteses. 

Sai  um pouco mais cedo, antes de ir pregar, e passei pela favelinha que irmã Ana construiu. Parei o carro, desci e entrando pelo meio dos bacarros fui perguntando: -"alguém aqui se lembra da Irmã Ana? 

Só duas pessoas que estavam ali, naquele momento, lembravam-se. Uma, que havia sido muito próxima,  estava na missa. A outra - um rapaz de nome Armando- se dispôs a me contar o que lembrava. Ele era  criança, na época. Lembrava-se  que em dias de feira livre, irmã Ana passava com a sua carroça e as crianças subiam.  Iam de barraca em barraca, recolhendo as sobras e voltavam para a favela, ela mesma distribuindo tudo com equanimidade.

 Esse era o seu lembrar. Um lembrar de festa: festa do passeio na carroça,  e festa da comida na mesa. Perguntei se estava trabalhando: disse que fazia bicos. Perguntei quantos moradores daqueles  bacarros são os mesmos de antigamente. Poucos. A maioria vendeu. 

Há comercialização em favelas e elas acontecem, quase sempre na base do escambo.

Agradeci, e me despedi com uma iluminação súbita: irmã Ana foi a primeira construtora de uma favela em nossa cidade. Ela mesmo comprou tábuas e encerados e nos impôs a sua arquitetura. Fez o que sentiu e esse sentir deve ter alcançado vários resultados. Alguns, felizes, outros, nem tanto. Mas o grande mérito dessa criatura  é que ela viveu com coerência, lutando por um ideal, dispensando adesões e simpatias, as quais  nunca obteve em vida. E agora, ironicamente, lhe sobrevêm na morte. Eita humanidade!  
 
Depois,  várias outras reflexões vieram, por conta dessa mirada repentina, como um cubo que é jogado ao chão, caindo sempre  com faces intercaladas: 
- "pobres sempre tereis entre vós," disse Jesus; teria Irmã Ana se preocupado com o espírito desses homens e mulheres?
-  Aproveitadores também, sempre tereis entre vós,  acrescento eu. Mais importante do que cuidar das necessidades do corpo é formar uma mente sem distorção de caráter e isso só o Evangelho faz.
- O que realmente sobrou dessa obra tão difícil, solitária e mal compreendida poderia ser aquilatado aqui? ou só na eternidade? 

Os barracos ainda estão ali para lembrar. Bem ao lado do Posto Central de saúde do Município. Irmã Ana deixou os seus pobres muito bem localizados, diga-se de passagem.Tem rico morando bem mais longe.

Antes de sair, uma última lembrança: Irmã ana era professora de piano,  dava aulas para os filhos dos ricos e com o dinheiro obtido, sustentava precariamente os seus pobres. Quanto deve ter sofrido essa criatura, equilibrando-se precariamente entre dois mundos tão opostos. Eu sou uma equilibrista e sei que dá trabalho. 

Por conta dessas aulas, os ricos conheceram uma cadeira estilo Luiz XV, que ela deve ter herdado da família polonesa, em um passado distante. Eu vi a cadeira: minha filha era sua aluna. A cadeira era coisa fina, de madeira maciça, toda entalhada! Naqueles tempos não tínhamos aqui acesso a essas preciosidades do mobiliário clássico. Mas irmã Ana tinha.

As madames passavam por ali e também viam a cadeira: ah, como viam! Viam com grandes olhos de espanto: "uma cadeira dessas, nesse lugar, com essa pessoa". Ah, que gula!

E as propostas chegavam todos os dias. Dou tanto: não vendo! Troco por tantas lajotas de tijolo: não quero! Tenho um cavalo novo para a sua carroça: não preciso!
 Irmã Ana tornou-se irredutível muito provavelmente para ensinar a  todas nós que existem coisas que o dinheiro não compra. Eu juro a você que nunca ousei escambar e nem comprar. Mas que  achava a cadeira um primor, isso eu confesso.

Tempos depois, enquanto ela ainda estava entre nós, fui atrás de uma empregada na favela. Repentinamente, dobrando a primeira ruela, quase caio de costas: um homem de cheiro forte e ocre, sentado num trono, feito o rei do beco escuro: o trono era a cadeira da irmã Ana. Que ele levara de graça. Pela graça de existir. 

Assim era Irmã Ana. Precisa dizer mais? Que histórico retrataria Irmã Ana com fidelidade? Que encheção de parágrafos delicados lhe faria juz?  Meu Deus, que pobreza esse nosso mundo  das relações institucionais.

Volto ao presente. Dou uma última olhada ao lugar. Uma das casas foi vendida e transformada num boteco, com um puxadinho para fora, à guisa de varanda. Lá, embaixo de uma fraca iluminação, dois homens jogam cartas e um terceiro observa. Todos com um copo na mão. Do lado esquerdo, crianças brincam as suas sujidades: dois deles rolam no chão. Provavelmente dormirão sem banho.  Do lado direito, um bacarro iluminado, e lá de dentro vem um som tão alto que alcança o favelio inteiro: " O fogo arderá continuamente sobre o altar, não se apagará, o fogo arderá continuamente sobre o altar, não se apagará" - diz o refrão. 

Lembro de irmã Ana com o fogo da caridade que ardeu e se apagou. Lembro de Irmã Ana sob esse duplo aspecto que nos deixaram múltiplas interpretações. Tudo tem pelo menos dois lados - foi assim que comecei este artigo. Este tem vários.

 Irmã Ana foi uma santa, mas uma santa sem discernimento da maldade humana e das incongruências sociais. Que para santa ela fora feita. Santos não são santos por terem esse tipo de discernimento. São para se gastar até a última gota. E eu prefiro lembrar de irmã Ana como uma santa que foi. Até a última gota.

Queria terminar esta narrativa por aqui, mas ainda não posso. Aguente só mais um pouquinho porque o melhor vem agora.

Enquanto dou partida no carro e vou-me embora, ainda ouço o hino: " o fogo arderá continuamente sobre o altar.." 

Ao chegar à igrejinha da periferia, em outro bairro, do outro lado da cidade, a surpresa que fecha este artigo, e que vai fazer o incrédulo pensar que  é apenas isso : um fecho para um artigo.  

Mas não é. 

Poderia ter fechado lá em cima. Lá quando escrevi: "Até a última gota." 

E  não estaria sendo fiel e verdadeira com o meu Deus. O final da história foi ele quem escreveu. 

 Ao chegar à igrejinha da periferia, em outro bairro, do outro lado da cidade, já pensando na mensagem que teria que pregar, ouço ao longe,  os irmão cantando o mesmo hino: "o fogo arderá continuamente sobre o altar, não se apagará..."

 Nem eu acreditei. Deus é um riso! E a sua mensagem é a mesma, para todos, em todas as épocas, em qualquer lugar: "O FOGO ARDERÁ CONTINUAMENTE SOBRE O ALTAR E NÃO SE APAGARÁ."