Meu pai, crônica de Eliana Cançado Ferreira

Eliana Cançado Ferreira (*)

Meu pai chamava-se Antônio, mas tinha o apelido de Pepê, porque, quando era molecote, saia pelas ruas da cidade, sobraçando uma cesta de pães e, usava um casquete, à moda do Tiro de Guerra, no qual minha avó bordara, em ponto cheio, as iniciais “PP”. As letras significavam Padaria Progresso, o negócio da família. De início, as pessoas chamavam: _ “Oh, menino!” Depois, virou “Oh, Pepê!” e, assim, ele ficou conhecido pela vida toda. Só minha mãe o tratava de Antônio. Papai era comerciante, dono de um armazém de secos e molhados onde se vendia de tudo: carnes, anzóis, linhas, cadernos, enfim...

Minha casa era parede-meia com o armazém e uma porta permanecia permanentemente aberta, ligando os espaços. Mamãe trabalhava fora. Era funcionária dos Correios e Telégrafos e, então, era o Seu Pepê que, além de cuidar do armazém, tinha que manter na linha a filharada. O armazém, para nós, crianças, era um mundo de magia com tantos odores, sabores, tantas pessoas com suas histórias, encantos e desencantos. Papai tinha um grupo de amigos que, lá, no armazém, se reunia à tarde para degustar uma cachacinha, a Cristalina do Picão, acompanhada de uma perdiz, uma codorninha e uma gostosa pasta de grão-de-bico que um deles fazia como ninguém.

No final do ano, Papai fazia o balanço do armazém. Eram dias de festa para nós que íamos os noves irmãos para ajudar, pois, no nosso entender, Papai não podia prescindir de tal colaboração. Hoje, desconfio que mais atrapalhávamos que ajudávamos. Papai, contudo, paciente, nem pensava em nos despachar. No final do balanço, Papai camuflava um pouco o resultado para mamãe, porque, como ninguém que entrasse no armazém saía sem os mantimentos de que precisava, mesmo sem ter como pagar, às vezes, a receita e a despesa não fechavam cem por cento!

Os fregueses de papai sabiam que, mesmo desempregados ou com dificuldades financeiras por motivos de doença, podiam contar com sua cesta básica e até com vales para comprar gás e remédios na conta de papai em outros estabelecimentos. Um dos momentos mais emocionantes de minha vida foi ver no velório de papai, tantas pessoas que ele ajudou e foram lhe levar o seu reconhecimento. Papai era um homem bom, honesto, carinhoso. Não se pode dizer que ficou rico, mesmo tendo conseguido estudar todos os filhos.

Quando ia a São Paulo fazer compras, com seus colegas, na volta, era um problema com Seu Pepe que não conseguia ganhar mais nas mercadorias que a sua consciência achava justo e isso lhe rendia alguns aborrecimentos com todos os comerciantes. Era papai que nos acordava de manhã para ir à escola. Quase sempre, despertávamos com o cheirinho bom do primeiro café da família que, toda a vida, ele coava e levava a primeira xícara, na cama, para mamãe. Ele nos chamava de mansinho, dizendo que já era hora, que o sol já esta no meio do céu e puxava nosso dedão do pé. Se ainda, não acordávamos, ele fazia cócegas em nossos pés e, se ainda não fosse o bastante, ele usava a sua tática infalível: enrolava um papel em forma de canudo e fazia cócegas em nossa boca de modo que íamos acompanhando o papelzinho até abrir os olhos e dar com seu largo sorriso.

No final do dia, papai controlava o banho da filharada, porquanto o banheiro era um só e tinha que estar livre, limpinho e sequinho para quando mamãe chegasse do Correio. À noite, empoleirávamos todos os onze na cama de casal que, por mais de uma vez, foi ao chão. Contávamos caso, em um doce serão, pois a televisão ainda não invadira a vida das pessoas. E, quando davam nove horas e meia, íamos para a cama e durante um bom tempo, só se ouvia: “Bença, mãe e Bença, pai”. E eles respondiam a um por um: “Deus te abençoe" com o nome do filho que pedira a benção.

Nos últimos anos de sua vida, já calejado e mais sofrido, ainda brincava conosco, puxando, carinhosamente, nosso cabelo, deixando que lhe espremêssemos os cravos o quanto quiséssemos, lambiscando sem parar enquanto a bóia não saía. Também vigiava onde estávamos, se viajando ainda no Brasil ou para o Exterior, porque, segundo ele, isso dependia do número de garrafas vazias na despensa. Hoje, meu pai Pepe, você partiu, mas continua comigo. Sua foto está em minha mesa de cabeceira e sua maravilhosa presença no meu coração. Você, querido pai, é a mia s bela lembrança que eu gosto de ter. Sua benção, Papai!

Divinópolis, 10.08.08

* Eliana Cançado Ferreira é educadora e, atualmente, é a Superintendente Regional de Ensino de Divinópolis.

edson gonçalves ferreira
Enviado por edson gonçalves ferreira em 12/08/2008
Reeditado em 12/08/2008
Código do texto: T1124571
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