NÃO ME ARREPENDO DE NADA

NÃO ME ARREPENDO DE NADA

Atravesso o silêncio da biblioteca.

O matutino nas mãos e as notícias do dia:

“Domingo, 10 de Agosto de 2008 ...

Europa: Presidente declara estado de guerra na Geórgia”.

Da poltrona, avisto a estante

e busco os olhos amorosos de Tbilisi,

meu si, meus sis.

Nas fotos os personagens mortos enigmaticamente

parecem me interrogar.

Fecho os olhos e vozes voltam a habitar o presente dos vivos:

_ Mamãe, quem é este moço, aqui? Ele veste um uniforme militar...

_ Ah, este é o primo que a vovó Aksênia deixou na Rússia. Ela o adorava.

As fotos são antigas, em sépia.

_ E esta senhora aqui, junto a este outro moço?

_ Estes certamente eram amigos da vovó.

As breves ressurreições da memória e a presença dos meus mortos nas fotos, dos meus antepassados...

Nos porta-retratos, os rastros, os vestígios, os templos da Geórgia,

a distância no tempo,

a proximidade no presente,

o meu doar presença aos mortos,

aos que lá permaneceram,

e a trágica história do século XX:

a Revolução Bolchevique,

a I Guerra,

a II Guerra...

teriam eles sobrevivido?!

E os amigos, as famílias, os filhos, os netos?!

A imigração, a minha história,

os imigrantes já não são os mesmos quando partiram,

pois as histórias deles se entrelaçam à minha,

e, no entanto, ainda são os mesmos nos gestos, nos ritos, no idioma, enfim, estão enredados em suas próprias histórias, e na minha!

Retomo a leitura do jornal, e me acerco de um pungente depoimento:

“ _ Por que há guerra? Por que as pessoas lutam e morrem por um pedaço de terra?” – lamenta Valentina Beskayava, na fronteira da Ossétia do Sul com a Geórgia.

Repentinamente a melodia invade a biblioteca.

No quarto ao lado, o pequeno pássaro, Edith Piaf, canta:

“Non! Rien de rien.

Non! Je ne regrette rien.

Ni le bien,

Qu’on m’a fait,

Ni le mal,

Tout ça m’est bien égal!...”

Meu olhar imediatamente pousa no mapa do conflito e proclamo:

_ Abhházia, Poti, Senaki, Kareli, Gori, Vaziani, Tsinvali, Tbilisi

cantem com La Môme Piaf, o doce passarinho da França que foi só, tão-somente amor!

Compreendendo a vida por meio das tragédias pessoais, Piaf compartilhou a sua visão de mundo, repartindo suas alegrias e tristezas e cantando pelas ruas de Paris, pelas ruas da Europa destruída pela Guerra, pelos palcos do mundo.

Sim, georgianos, busquem a mútua compreensão em suas próprias diferenças, associada à prática da dádiva, do perdão e do respeito*, para que no final da minha-nossas existências possamos afirmar com Piaf:

“ _ Não me arrependo de nada.”

* Conceitos extraídos da obra filosófica do brilhante pensador francês Paul Ricoeur.

Prof. Dr. Sílvio Medeiros

Campinas, é inverno de 2008.