NÃO ME MATEM.
Ana Maria Ribas. 

A sociedade tem essa prerrogativa de derrubar os  santos que somos. Derruba,  faz picadinho com a nossa santidade, depois vende na feira das vaidades e parte em busca da próxima vítima.

Alcançar a santidade não dá muito trabalho. Não dá mesmo.   Ser santo,  é apenas um estágio que começa a ser atingido depois de  uma compreensão súbita. Que vai evoluindo gradativamente.  Não é um estado a que se chega depois de muito êxtase.  

Derrubar os santos também não é tarefa muito difícil. Uma distração, uma veneração exagerada, um passo em falso, e  o santo já era. Com ou sem andor.

Compreendi isso no ano de 1994, quando matei o meu primeiro  santo.  Com as minhas mãos, com essa que vos escreve agora, eu  matei aquele santo e  Deus teve que fazer de novo  o que já estava em estado bem adiantado de santificação.

Esse homem morava por aqui mesmo, carpinteiro de ofício.  Quando não estava na função, gastava  horas lendo a Bíblia, orando, e buscando intimidade com Deus.

  Essa intimidade crescendo, também fez crescer a fila daqueles que  vinham buscar um pouco das migalhas que caiam da sua mesa. Eu era uma delas. Faminta e migalhenta convicta, vinha sempre buscar a minha ração acostumada.
 
Foi quando um grupo de pessoas começou a  reunir-se lá em casa para orar e estudar a Bíblia. Todos com fome. Um grupo de pessoas com bom poder aquisitivo, mas com fome,  porque rico também tem fome. 

Fui eu quem  apresentei a eles o carpinteiro que chegou  pela primeira vez, tímido, com grandes olhos de espanto, ele que já era, por natureza, um espantado.

Assim  começou:   foram tantas as manifestações do poder de Deus entre nós, foram tantas as curas, os milagres, as revelações, que ninguém fazia mais nada, sem antes ouví-lo. E ele sempre nos remetia à Bíblia, à Palavra de Deus. Não era um guru, era um santo. Um homem de poucas palavras e muita sabedoria.

Mas, um dia, eu tive a idéia fatídica: por que não fazer dele o nosso pastor? Poderíamos tirá-lo daquele casebre em que morava, dar-lhes - a ele e à família-  uma casa digna, vestir sua mulher, seus filhos, oferecer um carro para que ele pudesse orar pelos doentes da cidade toda, enfim, livrar esse santo do trabalho do mundo e  ocupar o seu tempo com o trabalho de Deus.

E foi o que fizemos. Alugamos uma casa, compramos móveis- todos!- roupas para toda família, um carrinho popular à disposição em sua porta, e um salário que simbolizava bem umas cinco vezes o que ele ganhava como carpinteiro.

Assim também começamos a matá-lo. Com uma posição que ele nunca tivera, com situações que ele jamais alcançara, com bens materiais que ele nunca sonhara. Não com tanto. Era muito. Era demais. Era uma enxurrada de coisas como aquelas  que o diabo oferecera a Jesus, se prostrado o adorasse. E o Senhor Jesus recusou.

Mas o nosso santo era feito de barro comum, do pó da terra. E não resistiu. De santo que  era, passou logo a ser cidadão brasileiro. Daqueles, bem deslumbrados. Abriu uma conta bancária e saiu gastando na cidade toda, fazendo dívidas, e  alegando o status de ser o nosso pastor.Que ele era. Ninguém tinha, como ele, o dom de orar e receber revelações do céu.

Um dia, levei até lá uma amiga que estava destrambelhando de vez. Queria separar-se do bom marido que tinha e cair nos braços do outro, um safado. Ela me pediu conselhos, eu dei. Mas sabia que era pouco. Ela precisava ouvir a voz de Deus bradando contra aquela idéia. Dizendo: "Eu sei, Eu vi, ninguém me contou. Sei porque sou o seu Deus. "

Levei-a até o pastor, para que Deus falasse.  E fiquei atenta à  repreensão que viria do alto. Ligeiramente ausente dali, esperava o "tombo" dela, não o meu,  tão boa  a sensação de nada temer e nada  esperar. Raabe era ela, não eu. Eu era Esther, Rute e Débora, mas Raabe era ela.
 
De repente, interrompendo a oração que fazia,  ele  voltou-se para mim. Chorando muito, o profeta, entregou-me uma sentença terrível: "Ana Maria, você vai passar por uma dor tão grande, mas tão grande, que homem nenhum poderá te ajudar. Só Deus, minha irmã, só Deus."

 Lembro-me do meu grito de desespero. Ainda hoje eu o tenho dentro de mim. Um torpedo vindo do alto acabara de ser disparado contra o meu coração,  e eu sabia - ah, como eu sabia!-  que, um dia, ele chegaria à terra. Era o ano de 1994. 

Mas a vida continuava.
 
O santo orava por nós no lugar santo, mas no lugar profano, as contas cresciam. As inutilidades domésticas começaram a se acumular em sua casa. Aparelho de som. Mais uma televisão. Batedeira. Mais uma geladeira. Cortinas de duas cores: roxa e amarela. Mais uma bicicleta para cada filho. 

Alguns meses depois o santo estava morto e nós com uma enorme conta para pagar na praça. O santo depois de morto, sumiu. Foi ser carpinteiro em outras paragens, que da carpintaria jamais deveria ter saido. 

Aprendi a lição. A lição de não idolatrar os santos e nem humanizá-los com a vida fácil dos profanos. Que santo precisa ter a fartura  regulada, como o maná que Deus envia do céu a cada dia. Santo precisa orar para que o corvo traga a comida na caverna. Santo precisa de carruagem de fogo como a de  Elias e não de  gol bola. 

Perdemos o nosso santo. Que rapidamente,  alugou um caminhão, colocou todas as coisas em cima e foi embora. Uma grande mudança, ele que chegara ali com uns trapinhos.
 
No início do ano de 1995, o torpedo que viria do alto sobre a  minha vida,  chegou à terra. Não houve nada que pudesse evitar o que já estava determinado, desde antes da fundação do mundo. Enquanto eu chorava, lembrava. Ah, como eu lembrava!

No final de 1995, recebo uma ligação a cobrar do Mato Grosso: era ele. Pensei que estivesse  me ligando porque soubera, porque quisera solidarizar-se conosco. Notícia ruim corre como o vento. 

Não sabia. Ficou confuso, gaguejante, perdeu o rumo,  não disse mais nada.  Então lhe fiz lembrar a profecia que ele me entregara no ano de 1994: ele também não se lembrava.

A profecia era minha. Meu também era o processo de santificação que, em mim, apenas começara. 

Não me matem eu vos imploro.