ANTES QUE VOCÊ SE VÁ, EU ME VOU.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI


Há dois jeitos de contar a vocês que fiz um bolo. O primeiro é assim: estava com vontade de comer um bolo. Mas não daqueles,  comprados em confeitaria, que aparecem na vitrine mascarados, com uma  meleca caramelizada. Eu queria um bolo nu, desses bem defeituosos, cujo cume de tão irregular lembrasse o Aconcágua sem neve; cujas laterais, tivessem as cores do povo brasileiro: claro aqui, moreno ali, negro acolá. Plasticidade, entende? Um bolo tem que ter a plasticidade de uma obra de arte, apresentando os veios. 

E tal bolo era para o chá da tarde. 

 Então, fui até o armário e vi  - prá variar - vi que  faltavam os ingredientes.  Nada que Nalva, com a sua bicicletinha mágica, não resolvesse. Nalva é tão rápida no manche da sua bicicleta, que quando se pensa que  está indo,  já voltou. 

Voltou com a farinha  e o fubá, mas o bolo  ainda tinha que ser feito. A alquimia começava.  Fiz  o bolo e  também uma baita bagunça na pia da cozinha, no chão da cozinha, na janela  da cozinha, na geladeira da cozinha. É que na hora de ligar o liquidificador, e bater a massa, esqueci de colocar a tampa, e voou massa para todo lado. 

 Nalva só disse assim: "Eita Ana Maria Ribas, é por isso que Deus te colocou para escrever. Ele sabia que você só daria pra isso mesmo." 

Nalva é assim: me chama de Ana e eu gosto; me diz umas verdades: e eu aceito; me dá umas broncas e eu nem ligo.
 
Outro dia, ela queria  a minha atenção, que de há muito lhe está sendo negada.  Queria contar algumas coisas particulares da vida dela, que acaba sendo um pouco a minha vida, de tanto que gosto dela. Mas eu estava escrevendo, num processo de intensa criação literária, ( que chic, meu Deus!), num processo  daqueles que me trazem a ilusão de que, um dia, com muito suor,  ainda serei escritora. O estilo eu já tenho. 

Nesse dia,  Nalva começou a entabular a conversa, e eu nem ouvia, batucante que estava.  Só dizia: "hanhan, sei." E continuava escrevendo, sem registrar o que ela falava. Minha esperança era que desistisse.  Ela desistiu, mas antes me perguntou mal humorada: -"sua bunda não dói de tanto ficar sentada?" Eu respondi, um pouco menos rasa  e mais reflexiva: -"Não, Nalva, o que dói é outra coisa." E ela toda mal intencionada: -"Ah, quer dizer que a dor atravessou e já chegou ali?" 

Eu falava da dor da consciência, da dor da alma. Essa, às vezes, me dói um pouco. Olho em volta e há tantas coisas querendo conversar comigo: minhas gavetas, meus armários, meus amigos, minhas vizinhas. Por vezes, Silvia, Ivo. Todos condescendentes e compreensivos comigo. 

Esperem-me, até quando, não sei, um dia voltarei. 

Então, foi assim: bati o bolo, assei o bolo, comi o bolo, o bolo fez digestão e o milagre da metabolização aconteceu - incorporou-se em minhas células, o povo brasileiro e o Aconcágua sem neve.

 O resto, nórdico demais, Nalva levou para comer na casa dela. 

Esse é um dos jeitos de contar a vocês que fiz um bolo. 

O outro jeito, fica para outro dia: texto comprido ninguém lê. 

 Texto comprido  é lido pelo cursor do lado direito da tela. Escorrega feito tobogã, adeus, tchau, já era, tenho mais o que fazer do que ficar diante desta tela.  

Antes que você se vá,  eu me vou.