O Bruxo do Cosme Velho

O Bruxo do Cosme Velho

Lembro-me até hoje daquela aula de português. Tinha quatorze anos e estava na oitava série do ginásio. Dona Bete entrou na sala de aula e disse: “Esse bimestre faremos uma prova sobre um clássico da literatura brasileira”. E escreveu na lousa o nome do livro e o autor: Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis. Eu já gostava de ler, e até já arriscava meus primeiros escritos, mas minhas leituras limitavam-se a livros infanto-juvenis e quadrinhos. Quando comprei o livro – com muito pesar – logo de cara não gostei do que vi. Palavras difíceis. Parecia-me que quanto mais lia, mais tinha a impressão de que aquelas páginas não rendiam a leitura, não acabariam nunca. Antes mesmo da décima página, desiste, era algo tedioso, pavoroso. Abandonei o livro que mesmo sem ler, passei a não gostar. No dia da prova sobre o tal clássico da literatura, minha nota estava entre as piores da classe, também pudera, só respondi a primeira questão do total de dez, e então passei a odiar Machado de Assis, Memórias póstumas e tudo o que se relacionava a esse autor.

Anos depois voltei a reencontrar Machado de Assis, de uma outra forma, com outra leitura. E assim como Machado costumava fazer, vou confessar à você caro leitor, que não comentarei esse reencontro agora, nem sei se terei espaço para falar sobre isso, se houver oportunidade o farei. O que quero mesmo dizer agora é, que hoje como leitor, escritor e futuro professor descobri que não se pode e nem se deve obrigar um adolescente a ler Machado de Assis. Deveríamos ter uma lei que só permitisse a leitura da obra Machadiana após a maioridade, ou melhor, depois dos vinte e um anos, mesmo assim tendo no currículo a leitura de diversas outras obras e autores. Digo isso porque conversando com alguns adolescentes descobri que uma boa parte deles já foi obrigada a ler “Dom Casmurro” ou “Memórias póstumas” no período escolar e a grande maioria (algo em torno de 90%) passou a pensar que odeia Machado de Assis. O que me conforta é que tenho certeza de que a maioria – ao menos aqueles que tomarem gosto pelo hábito da leitura – descobrirão no futuro que estavam enganados.

Todos aqueles que já apreciam a história e a literatura de Machado de Assis, assim como aqueles que estão nesse momento de transição, sabem ou saberão agora, que nesse mês de setembro – exatamente no dia 29 – comemoramos seu centenário. O autor faleceu no dia 29 de setembro de 1908. Exatamente por isso resolvi aqui, homenagear com essa humilde crônica, aquele que é considerado o escritor mais importante da nossa literatura. E por falar em crônica, Machado é considerado um dos criadores da crônica em nosso país. Sua obra inclui também poesias, contos, romances, novelas, ensaios e peças teatrais.

Nascido de uma família humilde, mulato (na época da escravidão) e de saúde frágil, era epilético e gago. Perdeu a mãe e a irmã mais nova muito cedo. Cresceu no morro do Livramento no Rio de Janeiro, onde sua família morava como agregada. Não freqüentou a escola regular e aprendeu a ler sozinho. Aproximadamente aos doze anos perdeu também o pai, e desde então passou a morar com a madrasta Maria Inês no bairro de São Cristóvão, onde ela trabalhava como doceira num colégio da região, e Machadinho, como era chamado, torna-se então vendedor de doces para ajudar no trabalho. No colégio tem contato com professores e alunos e é provável que tenha assistido às aulas quando não estava trabalhando. Em São Cristóvão, conheceu uma senhora francesa, conhecida por Madamme Gallot, proprietária de uma padaria, cujo forneiro lhe deu as primeiras lições de francês. De maneira autodidata aprendeu também o Inglês e o Alemão, chegando inclusive a fazer traduções de algumas obras. Em 1855, aos quinze anos, estreou na literatura, com a publicação do poema "Ela" na revista Marmota Fluminense. Continuou colaborando intensamente na revista que o abriu as portas para escrever em dois outros jornais, como cronista, contista, poeta e mais tarde como crítico literário, tornando-se respeitado como intelectual antes mesmo de se firmar como grande romancista. Machado conquistou a admiração e a amizade do romancista José de Alencar (autor de “O Guarani”), principal escritor da época, de quem recebia grande apoio.

Em 1881, abandona, definitivamente, o romantismo da primeira fase de sua obra e publica Memórias Póstumas de Brás Cubas, que marca o início do realismo no Brasil. O livro, extremamente ousado, é escrito por um defunto e começa com uma dedicatória inusitada: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas". As demais obras de sua segunda fase vão muito além dos limites do realismo.

Ah! Claro. Já ia me esquecendo. Alguém pode estar se perguntando. Por que o titulo de “O Bruxo do Cosme Velho” nessa crônica? Se o distinto leitor me permite, ai vai a explicação: Reza a lenda que já como escritor consagrado, Machado de Assis foi morar num sobrado numa das ruas do bairro do Cosme Velho, onde no quintal da frente instalou um grande caldeirão de bronze que usava para queimar cartas, manuscritos antigos, e escritos que não pretendia utilizar. Os vizinhos estranharam o hábito e começaram a se referir a ele dessa maneira, mais tarde o apelido foi eternizado por Carlos Drummond de Andrade num poema em sua homenagem, e ganhou ainda mais força como forma de fazer alusão a sua prestidigitação, arte de enganar leitores e críticos com a sofisticação do talento.

Nota do autor: Para saber mais sobre a vida e obra de Machado de Assis, vale a pena conferir a exposição sobre o autor no 1º andar do museu da Língua Portuguesa, que estará disponível até o final deste ano.