EU QUERO VER O TOMBO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

Não, nem todo tipo de frieza é maldade. Pode ser apenas um excesso involuntário de lucidez, dessa lucidez que nem sempre me vem em horas apropriadas.  Azar o da hora. Preservo com unhas e dentes  a  lucidez, ainda que me queiram louca, por causa do impróprio da hora. 

Jogos Olímpicos de Pequim é hora inapropriada  para conservar a lucidez, mas não abro mão dela. Nas entrelinhas, morde-me  a isca. Ou sou eu quem mordo a ela.
 
Ivo, diante da televisão, como todo brasileiro,   embabascado com tantas performances plásticas, é quem me provoca a lucidez, nesse domingo de manhã.

-Olha, Ana, o que essa Pavlova faz com o corpo!? - Ele tenta me prender enquanto vou passando, distraída,  pela sala.
- Esse corpo que a terra há de comer- Eu retruco, sem mal humor, apenas desinteressada. 
-Olha Ana, a altura da pirueta da Daiane dos Santos! Isso é muito difícil! - Ele exclama, extasiado com a gauchinha.
- Difícil é morrer e voltar a viver.- Eu pondero, para que ele me libere de vez. 
- Veja essa chinesa, veja isso, Ana, parece ter o corpo de borracha!!!
- Esse não é o corpo glorioso que vamos receber.  
- Putz, Ana, mas você é uma chata! 
- Putz Ivo, você é um deslumbrado.
- Isso aqui é arte, Ana, isso aqui é espetáculo, isso é domínio do corpo.
- Eu prefiro o domínio do espírito. 

Meu diálogo com o Ivo é real, e eu faço um pouco de charme porque com essas respostas antagônicas, nos divertimos os dois. Uma forma de comunicação enviesada que nos faz rir, na falta de melhores risos.  Mas é também emblemático.  Há uma realidade histórica  na tensão que existe entre esses dois mundos tão desencontrados. Parte do que digo, é para fazê-lo rir. Parte, é para fazê-lo pensar. 

De que vale um dez redondo  para a forma perfeita? E os décimos que se perdem, quando na saida, o joelho falha? Entre vencer e falhar quantos  segundos são necessários? Não é assim a vida? Num minuto você é vencedor, no outro, você é perdedor. Para o vencedor manchetes que duram o dia todo nas páginas virtuais, para o perdedor, manchetes que são rapidamente substituidas por outraS que tragam mais alegria para o povo.    

Por volta do ano 70 DC. viveu Timóteo.  Fomos muito amigos, Timóteo, Paulo e eu. Timóteo era atleta e praticava saltos mortais, uma modalidade que lhe valeu medalha de ouro na Grécia Antiga. Timóteo fazia piruetas fantásticas que certa vez o levaram de Corinto a Athenas, num duplo mortal. Logo depois que Timóteo recebeu a medalha, eu ouvi Paulo dizer a ele, discretamente e com carinho, como um pai fala ao filho. Paulo disse mesmo assim: - Timóteo meu filho, "exercita-te a ti mesmo na piedade. Pois o exercício físico para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de vir." ( 1 TM 4:7-8). 

Paulo disse só isso. Valeu, Paulão!

Mas agora é a vez de Diego Hipólito.  Diego e o tombo na Grécia Chinesa. Paulo não estava lá, mas eu estou aqui e tenho algo a dizer:  As performances perfeitas de Diego para pouco aproveitam. O que vale é o tombo. O tombo é humano, dignificante, sublime, e didático-pedagógico. O tombo, o espanto, o pedido de desculpas e a frase: "não acredito que cai".

Eu acredito que você caiu,  Diego, e seu tombo me foi muito útil. Ele me provou que não há bonecos de borracha competindo em Pequim, há homens de carne e osso. Homens que caem para se levantar humildes, pedindo desculpas por não terem a plasticidade dos deuses da Grécia Antiga. Aqueles mesmos que eu encontrei por lá, em todas as praças, em todos os átrios, peladões com "las verguenças" de fora. ( em homenagem à minha avó que me dizia: "guarde muito bem as suas verguenças.")

Tenho guardado, vó, tenho guardado. Minhas verguenças, embora bem guardadas,  não me impedem de corar  quando sinto que a humanidade fica paralisada, bem na hora em que deveria gritar:  Viva Diego Hipólito! Bravo! Bravíssimo!

Viver, para mim, é assim: um novelo desenrolado lentamente ao fio da minha roca.Que me fura os dedos. 
Para outros, é uma medalha de ouro conquistada em Pequim. Que lhes aumenta o gáudio.

O tombo é para todos.