A REVOLTA DA SARDINHA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.


Começa assim:

Eu já contei aqui, que me tornei extremamente minimalista.  A primeira vez que me deparei com essa palavra - minimalista - foi numa revista de decoração. A casa era pelada e branca, não tinha vasos, não tinha flores, não tinha objetos. O que impressionava era um grande pano de vidro temperado, que subia do piso ao teto, uma escada cinematográfica, uma mesa para seiscentos lugares e um sofá branco onde caberia toda uma família deitada.  Família de 600 pessoas. E o sujeito dizia que esse era um estilo minimalista. A revista tinha que conhecer a casa da minha faxineira: ali está a essência do verdadeiro minimalismo.

Mas deixa pra lá. Minimalismo hoje é um detalhe que introduz a revolta da sardinha. 

Quando se concretizou de vez a revolta da sardinha,  dei tudo o que estava guardado, há anos para aquela ocasião, que não aparecia há anos.
 
Comecei me livrando dos vestidos de festa de hum mil novecentos e bolinha, porque não vou mais a festas. Acho uma injúria quando me convidam para uma festa. Casamento, então, meu Deus, só vou amarrada e assim mesmo, logo depois da cerimônia religiosa dou um jeito de me des-amarrar e  voltar para casa.
 
A última vez que fui,  voltei  chorando. Porque me doíam os pés, naquela sandália altíssima. Comprei essa malfadada sandália,  recentemente. Eu estava escolhendo outra,  bem menos estilosa, mas muito confortável. Só que a minha cunhada, Marina, estava comigo e disse assim: "benhê, quer conforto, vai de chinelinho havaiana. Não tem essa, não. Pra ir a uma festa, tem que ir em cima do salto."E eu, obediente, fui. 

 Depois de três horas em cima do salto, cheguei em casa desabando e chorando. No outro dia, fiquei descalça o dia todo.

 Antes, muito antes, da revolta da sardinha,  eu ia à cerimônia e à festa. A contra gosto, mas ia. Depois,  alguns amigos começaram a reparar que eu comia e vinha embora, imediatamente. De fininho. Porque já cumprimentava os noivos,  no começo da festa para poder conquistar a minha alforria, depois da boca livre.  E aí, certas pessoas, cuja amizade permite a liberdade, começaram a verbalizar o que a voz da minha consciência já dizia: - "Nada de comer e sair correndo. Que feio!" 

Tive que concordar: coisa feia mesmo, comer e sair correndo. Melhor sair correndo sem comer.  "Não tem comida lá em casa não?" - eu me perguntava. "Às vezes sim, às vezes não." - eu me respondia. Quando a resposta era não, eu comia um lanche no Queiroz. Ou um pastel na feira.  Quando a resposta era sim, eu esquentava as sobras  do almoço e comia, com um prato na mão, sentada lá fora, rodeada dos meus cachorros. 

Ivo não, Ivo fica até o fim da festa. Ele gosta de festas. Ivo é um homem socialmente correto. Casado com uma mulher festivamente incorreta.
 
Quando assumi de vez, que era festivamente incorreta,  dei adeus aos salões de beleza. E aqui começa pra valer, a revolta da sardinha. Passei boa parte da vida, até alguns anos atrás com uma cabeleira comprida.  Que exigia de mim escova 3 vezes por semana, tintura, hidratação e coisas tais. Entre a cabeleira que eu cultivava, e os pêlos dos quais queria me livrar, lá se iam mais 2 idas extras ao mês, além das 3 semanais. E manicure semanalmente, e pedicure quinzenalmente. E modelar a sobrancelhas. Até o dia em que me descobri uma sardinha e me revoltei de vez. 

A revolta da sardinha começou com um telefonema. Um único telefonema que me fez enxergar os milhares de outros idênticos que se repetiam a cada semana:
- Alô, é Ana Maria. Tem horário para mim hoje?
- Só encaixe.
- Ok, vamos lá. Quero escovar o cabelo.
- Deixa eu ver... vou te encaixar às 10 horas, entre a Cida e a Rosa.
-Ok. Quero fazer a mão também.
-Ah, a mão tem que ser as 8,00 horas. Vou te encaixar entre a Madalena e a Iracema.
-Ok. A sobrancelha.
- Sobrancelha... a sobrancelha  a gente encaixa entre os encaixes, na hora em que você estiver sendo encaixada.

Meu Deus, eu não era sardinha para viver encaixada! Ah quanto tempo, estava vivendo encaixada, sem ser sardinha? Milhões de anos? Desde toda a minha vida? Quantas horas preciosas  eu havia perdido, encaixada no meio de sardinhas que  mal conhecia, e que mal me conheciam também, todas nós obedientes  e caladinhas, esperando pela liberdade que nos era periodicamente sequestrada?

Cansei de ser sardinha e viver encaixada. Cortei a cabeleira bem curtinho, lavo em casa, seco naturalmente, faço tintura em casa, faço luzes em casa, faço tudo em casa. Eu e Nalva, Nalva  e eu.  Sem encaixes. Sem custos excessivos. Sem a sensação desagradável de estar sendo confinada.

E como Nalva aprendeu a fazer luzes? Fazendo. Ser minimalista é também um jeito de ser assim: "deu certo deu, não deu, dane-se.  Se estragar, corta mais curto." Mas sempre dá certo. Nada que um Kit milagroso da Koleston não resolva.

 Nalva é linda! Sou eu quem faço a tintura do cabelo dela. Nalva também não gosta de ser sardinha.

Hoje no almoço teremos sardinha. Ivo não gosta.