Amanhece o dia em Corinto. Inicio este texto às 5,40 da manhã, porque hoje gostaria de guardar o sol, um pouco mais tarde do que habitualmente. Em compensação há dias em que quero guardar o sol por volta das 15,00 horas, mas ele não me obedece.

Amanhece o dia em Corinto. Corinto, atualmente, é um conjunto arquitetônico formado pelas  ruinas da grande cidade que existiu na Grécia Antiga, e que atraiu milhares de mercadores vindos de Roma, Tessalônica, Patras, Éfeso  e kalamaria, potências comerciais da época. Corinto foi um grande núcleo populacional e um próspero centro comercial. 

Corinto foi também um depósito de amores e de dores existenciais, porque  homens e mulheres habitaram ali, e aonde habitam o macho e a fêmea da espécie humana,  também  co-habitam as angústias existenciais  mais profundas que nos distinguem dos seres  primitivos.
 
Por isso, continua amanhecendo o dia em Corinto.

Eu estive em Corinto porque as ruínas me atraem. Viajei milhares de quilômetros para ver ruínas.  Elas exercem sobre mim o fascínio das coisas que guardam a ferrugem dos séculos. A ferrugem é o sentimento do tempo. E sentimento é coisa que levo muito a serio. 

Fui ouvir o tempo em Corinto. Sim, claro que vi outras coisas na Grécia. Vi estátuas de homens pelados,  minimamente cobertos por folhas de parreiras. Vi esplêndidos iates ancorados, como aquele que  Onassis usou para passear com Jaqueline, pelas ilhas de Mikonos. 

Onassis que já passou. Jaqueline que já era.

 Vi homens belíssimos, obtidos a cinzel, - e a beleza desses homens era feita de um  nariz grosso e romano. Vi mulheres sem beleza, desenhadas a lápis cera -de cor cinza - e mais não preciso dizer porque não quero lhes ser excessivamente cruel. 

Também não quero  roubar a fantasia que inspirou a música de Chico Buarque: " mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas." -Você percebeu que, em nenhum momento Chico cantou a beleza física das mulheres de Atenas? Pois é! Chico tem bom gosto. Foi buscar outras belezas, de outra ordem, nas mulheres de Atenas. 

Bom: Até pode ser que, de 1995 para cá, com o avanço da medicina estética,  tenham encontrado lápis de melhores cores para desenhar as mulheres de Atenas. Mas naquela época,  eu vos afirmo, o lápis era cinza. E a mão que desenhava tremia muito.  

   Vi o mar  verde-azulado, o céu azul esbranquiçado e as casas branco caiado, subindo pelas montanhas. Um conjunto arquitetônico tão sublime, que mais me pareceu um quadro emoldurado na parede de casa, do que propriamente uma paisagem viva.
 
Mas, sinto lhes informar,  não viajei tantas horas na classe econômica de um avião, enlatada feito sardinha, não viajei tanto tempo, para apreciar  um quadro perfeito na parede, um quadro que qualquer pintor pudesse pintar, ou que a televisão pudesse mostrar, com riqueza de detalhes e sem custos. Também não viajei para me deslumbrar com os iates e com o conjunto arquitetônico das ilhas gregas. Que arquiteta não sou. 

Sou operária da construção civil.

 Viajei para ver de perto as ruinas de Corinto que guardam a mágoa do tempo. E as minhas. Viajei para colocar a doce mão na eternidade. E de lá nunca mais a retirei. Todas as manhãs aqui em Cruzeiro, amanhece o dia em Corinto.  

 Desde que estive em Corinto, ganhei a visão que o Rei Salomão ganhou, bem antes que Corinto existisse: "não há nada novo debaixo do sol." 

Caminhando sozinha pelas ruinas de Corinto, eu vi o velho e o jovem; vi a criança e o adulto;  vi a humanidade cansada da mesmice de cada dia, mas que, - sem saber que aquilo era cansaço, - pensava ser apenas a vida. O habituado cansaço substituindo a novidade de vida e ninguém desconfiando: - todo o mundo resignando - o já resignado jeito de existir. Foi essa a visão que busquei, e encontrei em Corinto. 

  Os homens levantando às 5 horas da manhã para ir às casas de banho, e as mulheres levantando às 5 horas da manhã para ir às fontes de águas. Cada qual abastecendo a sua própria rotina com a sua rotina própria.  

As crianças brincando nas ruas, e os velhos vivendo em prece, assentados nas portas, debruçados sobre o seu passado e  sobre o seu  bordão. Os velhos de Corinto!

 Era assim em Corinto: nascimento, infância, juventude, maturidade,  velhice - vida e morte.  E hoje amanhece o dia em Corinto. Todos os dias, os mesmos dias, continuam amanhecendo em Corinto. 

Eu miro as  mulheres de Corinto e, obediente, levanto-me às 5 horas da manhã para abastecer essa mesma rotina, feita de pontos que formam um  círculo. Cumpro os meus pontos e não quebro a orbicuidade esférica. Quero tocar na eternidade sem pressa, mas com decisão.   

Hoje- especialmente hoje-  quero  caminhar pelos caminhos de pedra de Corinto. Nestes nos quais piso,  ainda não há o eruginoso limbo das pedras. Mas os dias passarão, os anos suceder-se-ão, os séculos tombarão, e no futuro - haverá futuro ainda que você não saiba- e no futuro,  uma mão novinha em folha, abrirá o portão que guardará o que restou, das ruínas da minha casa. 

Dessas ruinas, o distraido não irá extrair nada. Talvez, a única coisa que ele consiga enxergar seja somente isso que serão: ruínas. Mas eu espero que, pelos vestígios da minha vida,  passe alguém montado em Pégaso, o cavalo alado da mitologia grega. E que ao me pressentir por ali, arrie o cavalo, faça uma parada reverente,  sinta do que é feita a existência, toque na porta da eternidade e comprove sem grandes surpresas : "Ela chegou lá! Lá aonde, dentro em breve, eu estarei."

Mas hoje, 19 de agosto de 2.008, o dia ainda amanhece em Corinto. E amanheceu muito triste, porque perdi para o câncer, aos 38 anos, a minha grande e querida amiga Jocenir Sebastiani. 

Minha querida amiga: que Deus lhe  acompanhe às moradas eternas aonde o tempo, a ferrugem,  a traça  e o câncer não poderão lhe alcançar. Repouse nos braços do Senhor Jesus, aquEle  a quem você confessou como seu único e suficiente salvador, e que é poderoso para guardar o seu bom depósito até aquele grande dia.

Descanse em paz!  

Para nós, ainda não há perfeita paz: os dias continuam  amanhecendo em Corinto. 
                

* Imagem  do Blog Mochilão sem Fronteiras.