CHINA EU NÃO TE LOVIU.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI



"Falsificações são desprezíveis, imorais e ilegais", passou a ser a frase pontificada pelo governo chinês nas  escolas.  Claro que por trás disso, tem a pressão do governo americano. Óbvio! A última Veja traz essa e outras abordagens, sobre as cenas domésticas na China: uma mocinha que trabalha por 6 meses em Xangai,  economizando até o último iuanes ( a moeda chinesa) para adquirir uma legítima bolsa Louis Vuitton.

Certo! Os iuanes eram dela e a bolsa é dela. Cada um trabalha quanto quer,  gasta os seus iuanes como prefere, enche o bolso do Louis Vuitton que merece, fica com o próprio vazio,  e ninguém tem nada com isso. Nem eu.

A mesma revista abordou a maneira civilizada como os roqueiros fazem suas letras de música: absolutamente sem nenhuma referência  a sexo. Quando questionado a quem o compositor se referia quando escreveu a seguinte frase da música: "ela tem um corpo bom", o roqueiro respondeu que estava fazendo uma homenagem  à  mamãe. 

Certo! A letra da música é dele, e a mãe também é dele. Cada um tem a mãe que não escolheu ter, e se a mãe de um dos integrantes do CMCB é boazuda mesmo, sorte a dela. Numa China de mulheres desprovidas de boazura, ter uma mãe "com um corpo bom" deve render trabalho fixo como ama de leite.

Errado! Graças à política do filho único, adotada pelo governo chinês desde 1979, ser ama de leite é uma profissão que caiu em desuso:  cada casal só pode ter um filho, e consequentemente, a cada filho é-lhe negado o direito de ter um irmão. 

Mas isso é só um detalhe!

Essas e outras informações,  você pode pesquisar na Revista Veja. Tenho observado que a Revista Veja tem sido deveras graciosa com a China dos chineses, ou com os chineses da China. Um amor cultural que surgiu repentinamente, no lastro de um vetor celestial que passa a cada 5.000 anos,  sempre que uma Olímpiada muda o mundo, para determinada localidade do planeta terra.

Tentarei  ser benévola porque não gosto de qualquer tipo de discriminação. Nem mesmo aquela que a China tem feito com os animais. Buscarei conter os meus sentimentos,  porque dentro de um vasto universo populacional, naturalmente, devam existir as excessões. 

Mas embora eu me controle e me contenha, não posso deixar de mencionar que não consigo estabelecer  empatia com esse povo. E olha que sou uma pessoa com certa facilidade para a empatia. Já tive empatia estabelecida até com Sadan Hussein, bem antes da hora em que estavam lhe pondo a corda no pescoço; já tive empatia estabelecida com pessoas tão inomináveis, que só a graça de Jesus me poderia justificar. 

Mas pelo povo chinês, confesso: tenho que aguardar a evolução da minha espécie, para que a empatia se estabeleça. Devo ser anacrônica demais.

Enquanto isso não acontece tento entender, através das nesgas do jornal, da televisão, da internet, tento entender, olhando de relance, lá longe,  o que acontece  aqui  dentro comigo.  O que seria esse sentimento? Raiva, indiferença ou desolação de mim para comigo mesma? Afinal, o mundo todo está celebrando a China com todas as cores das suas bandeiras!
 
O que acontece com o mundo que não reage ao anacorético, alienígena e mórbido isolacionismo de um povo,  no terreno sagrado das relações humanas, que pressupõem um mínimo de coerência, ainda que fora dos nossos limites territoriais? Será que o que conta são apenas as relações comerciais? Apenas as ameças de bombas atômicas? O que não nos atinge como espécie  também não deve atingir as nossas considerações mentais? 

 Que pensam  os turistas do mundo inteiro quando ajudam a engordar os  cofres públicos da China, com o dinheiro de todas as nações? O que acontece com a humanidade? Perdeu a capacidade de  indignação e se vendeu  ao espetáculo das danças, dos tambores e das sedas? 

Eu não vi, recusei-me a ver e sinto muito por aqueles que viram. Ivo viu. Ivo viu a uva.  E ficou deveras deslumbrado com o que viu.  Tanto que cansou de me chamar para ver,  e eu disse a ele que não tinha interesse  em assistir nada relacionado com os chineses que dirigem a China. Eu amo os chineses mas o jeito chinês de ser, ditado pelos dirigentes chineses, me comove até às entranhas.  A palavra certa é essa: comoção.  

Como posso ser indiferente a um povo que até bem pouco tempo atrás praticava o massacre de crianças do sexo feminino? E que hoje  aceita como normal que, para casar um filho,  tenha que haver um pregão em praça pública, apregoando as características do macho, cuja espécie está ameaçada de extinção, por falta das fêmeas, que ajudaram a eliminar? 

Como posso ser apática com um povo que esconde o que sente  sem dar a isso o nome de hipocrisia? Ou que outra coisa seria aquela história de ensinar os estudantes a não chorar, não reclamar, não demonstrar o menor sentimento se o time da casa perder, e ainda acenar com aquelas bandeirolas ridículas que querem apenas dizer: eu nasci assim, eu cresci assim, eu vivi assim, morrerei assim - tão chinesa assim: Gabrieeela!!!

Como posso ser solidária a  um povo que some com todos os cachorros e gatos de rua, de maneira cruel, sabe-se lá se não genocida, apenas para que nenhum turista possa correr o risco de macular as pupilas com o desavisado cão sarnento que lhe cruze o caminho nas ruas de Pequim?

E o que dizer das 300.000 famílias, obrigadas a ceder espaço para a construção das instalações olímpicas, cujos protestos foram raros e isolados? Todas de uniforme e bonezinho maoísta fazendo reverência a Mao Tsé-tung?

A esse respeito, li na mencionada revista, que a comerciante Yu Pingju, unica voz isolada no meio da turba vermelha,  recusou-se a abandonar a sua casa, depois que todos os vizinhos,  já o haviam feito. Por essa rebeldia,  despropositada para os padrões da concordância chinesa, foi  chamada de "egoísta". 

Chamaram Yu Pingju de "egoísta" por não ceder passivamente o seu teto, a finalidades tão nobres quanto definitivas: a Olímpiada de Pequim sem a qual a humanidade teria a cura da AIDS retardada por mais 100 anos.  

Isso é só para começar. Mas não vou terminar: a lista seria longa demais. Fica por aqui mesmo o meu pífio, inócuo e solitário  protesto.

Termino reiterando o meu amor pelos gatos e cachorros de Pequim, e de todos os municípios da China,  que tiveram a infelicidade de nascer num país de tanta crueldade; termino por aqui, abraçando todos os ursos cujas atrocidades tem-lhes custado a vida, gota a gota,  por conta de um suposto remédio extraído do  fígado, gota a gota. Termino por aqui, reiterando a minha admiração por Yu Pingju que ousou discordar de 300.000 concordados camaradas maoístas.

Yu: I love you.