Crônicas de esquina 7 ( Os Pássaros )

OS PÁSSAROS

Em geral, acordo muito cedo. Mesmo durante as férias, quando a cama deveria ser uma espécie de rede pendurada entre árvores de um paraíso qualquer, não consigo dormir muito. Não me lembro de ter sido diferente. Uma espécie de tirania genética sempre atirou-me para fora da cama antes dos outros. Assim, levanto, tomo café, acendo um cigarro e vou à janela. A essa hora, na tranqüila Heber de Bôscoli, pequenos detalhes da natureza revelam os caprichos de Deus.

Um bando de maritacas passam sobre minha cabeça. A algazarra de sons, lembra-me o grupo escolar indo de ônibus a uma excursão num canto qualquer da cidade que não conhecíamos. Vamos em busca de alguma aventura que escreverá em nossas almas um dia de novidades. Quase tudo é a primeira vez e, como acontece a qualquer debutante, ficamos entre maravilhados e assustados. O Cristo Redentor, por exemplo, deixa-nos extáticos e estáticos ante a sua glória e imponência. A seus pés, de onde nos deparamos com a vista que se descortina orgulhosa, natureza e Deus se confundem num mesmo transe.

Entre o menino encantado e o professor sisudo fumando à janela, a imaginação ameaça desbotar-se a ponto de ver, no vôo dessas jandaias cariocas, apenas uma espécie de fome apressada. Mas o menino não quer se deixar esquecer e, insistente, puxa os retrovisores do tempo. A hora do recreio aproxima-se. Ao seu toque, como as maritacas, saíamos em debandada pelo corredor até o refeitório.

O professor afasta-se da janela. Talvez desconfie do excesso de argamassa que o tempo acumulou em seu peito. Para os adultos, a felicidade se constrói diferente. O bando de maritacas passou levando com elas a esperança. Volto à janela. Roncos de motor, alarmes que disparam, portas batendo. Pés se arrastam nas calçadas rumo à escadaria que os conduzirão ao ponto de ônibus. Do outro lado da rua, a padaria estará pela segunda ou terceira fornada. As maritacas tentam alçar-me ainda uma vez, mas a infância retrocede assustada, negando-me uma nova visita.

Ouço o canto de um pássaro. Não sei em que gaiola, mas o seu canto é quase um pedido de socorro dirigido à natureza. Certa vez, subindo as escadarias comigo, a amiga Sônia Balão dissera:

- Esse passarinho! Que canto triste! Parece um lamento!

Concordo, amiga. Um lamento por saber-se condenado; por não poder querer mais a liberdade. Somos nós o passarinho, amiga. Quantos lamentos também não entoamos na solidão do travesseiro? Quão triste é saber-nos presos aos grilhões da nossa própria vida? Sim, somos nós o passarinho. Dito isto, o menino despede-se do sonho. Quanto ao professor, este permanece à janela.

Aldo Guerra

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 19/02/2006
Reeditado em 13/01/2008
Código do texto: T113965