DANOU-SE TUDO!
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.


Minha diarista  foi, um dia,   ligeiramente espevitada. O que significa a palavra espevitada, no dicionário não sei, mas para mim significa uma pessoa em permanente estado  de uma esperteza avivada. Que lhe salta pelos olhos como chama acesa. Cida era dessa espevitice alegre, acompanhada por uma  felicidade duradoura, que a fazia gargalhar por qualquer motivo. De vez em quando a estridência sonora passava dos limites suportáveis, e alguns de nós éramos obrigados a pedir  um certo comedimento na sonoridade do riso.  Rir faz bem, mas o dia inteiro, e em tal volume, irritaria  até o vizinho. 

Minha diarista era essa, até se converter a uma determinada religião que lhe roubou parte da chama acesa e lhe cristalizou as atitudes e beatitudes de maneira  tal, que nem a reconhecemos mais. Sentimos certa saudade do riso fácil que  nos foi roubado. E dos "causos"  engraçados,   com que ela nos brindava em dias de faxina. Era uma faxina com direito a alguns episódios de Zorra Total.

É sempre assim: só se valoriza aquilo que já se perdeu, e aquela Cida nós perdemos. Nasceu outra. Essa quando sorri, apenas mostra os dentes. Sobe em escadas, com saias que lhe vão do meio dos joelhos até a metade das pernas. Usa blusas com mangas compridas, mesmo no maior verão. E uma curiosidade: sapatos de salto, não pode mais. "Fazem a mulher rebolar" - ela me disse.  Todos os outros "não pode" eu já conhecia, mas esse deve ser relativamente novo. Antes, ela vinha para o trabalho em cima do salto, e tomava emprestada uma das minhas havaianas. Ai que raiva, quando ela pegava exatamente a mais velha, aquela que  gosto mais. Agora, ela já vem de chinelinho rasteiro desde casa. Pouparam-se as minhas havaianas.

Pois com tal mudança eu vinha me intrigando. Coisa por demais, não só por fora, mas também por dentro.  Por isso, pedi para conhecer a instituição cristã que fôra responsável por tal metamorfose ambulante. Combinamos que "assim que viesse um pregador dos bons", ela me ligaria. Eu queria alguém de longe, que não me conhecesse, tão conhecida sou nesse urban mix caipira.

Na segunda feira passada, ela me ligou: viria lá um homem de Deus cuja histórico de vida não vou contar, porque você não acreditaria em tanto milagre reunido. Nem eu que estou acostumada acreditei, mas sou daquelas que quando não acreditam, pedem perdão a Deus e vão na pouca fé.  Milagre também é matéria de que gosto muito porque vivo cercada deles. De milagres de outra ordem.

Pedi a Nalva que fosse comigo: "nem morta vou dar esse gosto pra ela", foi a resposta de Nalva, atritadas que estão as duas, com as contradições teológicas entre as doutrinas religiosas da primeira e da segunda. Cida acha Nalva mundana demais, porque quando chega ao serviço, coloca bermuda para trabalhar. Nalva acha Cida louca demais, porque sobe em escadas, e mostra sem bermuda,  o que não deveria mostrar. E ficam as duas alfinetando-se o dia todo, todas as terças feiras. Terça feira é dia de teologia lá em casa. Dia de guerra entre  Irã e Iraque. E eu sou Aiatolá.

Na hora combinada fui, sozinha mesmo, mas antes lembrei a ela que não  revelasse a ninguém a minha identidade. Que  na minha cidade sou Suzana Vieira também,  mas de peruca, e óculos escuros, com um vestido gastadinho,  nem dá pra lembrar o último papel que desempenhei como Maria Olímpia. Lembra? Nem eu!  

O  bairro tão longe, o templo tão apertado, e as pessoas que me encararam desde a entrada, de maneira indiferente, e um pouco adversa, só não me fizeram sair correndo  porque eu sozinha me ajudei  a ficar,  pensando assim: "Um dia todos nós iremos desaparecer e nesse dia a terra irá  me comer!! Um dia todos nós iremos desaparecer e nesse dia a terra irá me comer!!

Foi com a juda do vermezinho da terra que permaneci estoicamente sentada, até que o trabalho começasse.  Nem mesmo Cida me socorreu, atarefada que estava, vestindo jaleco cor de rosa, como o de todas as demais obreiras, em fila indiana, grudadas à parede. Obreiras à serviço da parede.

Nossa, Cida nem me saudou, só disse assim mesmo: "Fique à vontade, você tem liberdade em nosso meio." Coisa por demais  formalizada, frase decorada, um frio de lascar.
 
Fiquei sentida: eu merecia um sorrisinho mais largo, pois se na terça feira anterior,  tomáramos juntas o café, eu, Nalva e ela. Mas não tem importância, pensei. Amanhã é terça feira e eu te pego na curva. Quando você chegar lá em casa vou dizer: "Fique sem ficar à vontade, você não tem liberdade em nosso meio." E parei por ali, porque a mágoa me impediria a bênção, e eu queria a minha.  

Logo no começo, o pastor chamou-me lá na frente: fui descoberta, mas descoberta por Deus. Voltei para o banco com a iluminura dos que recebem a promessa,  e dela tomam posse com mão fechada e dura: Ninguém me toma! 

 O restante do culto transcorreu de maneira normal. Que se anormalidade houvesse, eu também não contaria a ninguém, porque tenho temor de julgar as coisas de Deus. A Bíblia diz que não há perdão para aquele que proferir qualquer julgamento contra o Espírito Santo.  Quando algo me parece estranho, posso  não compactuar, mas não emito julgamento. Entro muda e saio calada.

O que vou relatar agora me exime de culpa, porque nada tem a ver com as coisas de Deus. Tem a ver com o homem, com o capeta, com o mundo e com Cida. 

O culto já ia adiantado, quando uma mulher gorda, sentada na última fila, bem perto de mim, começou a comportar-se de maneira inconveniente: batia palmas e gritava muito. O pastor, identificando o problema, pediu para trazê-la à frente. Para expulsar o demônio. Que a essa altura se voltara em fúria e lá do fundo, gritava de dedo em riste: - "mais jejum, mais santidade! mais jejum, mais santidade!" Esse era o refrão. 

Mas a mulher não viria, sem antes ser alçada por um guindaste: pesava bem mais de 100 kg. 

Cida era uma das obreiras designadas para funcionar como guindaste, na tentativa de arrancar a mulher do fundo do templo e levá-la até ao altar.  Os homens assistiam religiosamente, de longe, que homem ali não pode tocar em mulher, nem mesmo endemoninhada.( de ninho de demônios). 

 E o imbróglio persistia. A massa humana compactada em 110 kg, bem fornidos de carnes,  não se movia um milímetro,  enquanto bradava triunfante o seu refrão;  e o batalhão de  obreiras, todas com seu uniformezinho cor-de rosa,  delicadinhas, acabavam comprimidas contra a parede, a gordura, os ossos e as nervuras  do corpo que, ocupado pela entidade demoníaca,  dali não queria sair. Daqui não saio, daqui ninguém me tira.  Coisa terrível de se ver, mas com tanta agilidade dinâmica, que atraia a todos nós, seres em permanente estado de busca pelo sobrenatural. A vizinhança toda se avizinhou do templo. Quem nunca tivesse ido, naquele dia, foi.  

Nesse momento, olhando para Cida eu vi!  Eu vi, de novo, aquilo que me fizera tanta falta nos últimos meses: A alegria espevitada lhe voltara por completo,  e ela ria, ria despregadamente, como nos bons tempos, completamente esquecida da seriedade da função que lhe fôra designada.
 
Aproveitando o momento de distração barulhenta que se formara no ambiente, Cida voltara a ser a moça espevitada e de chama acesa. Viva! Enfim, novamente viva e a minha vontade era correr para abraçá-la, dizendo: Bem vinda ao mundo dos vivos, minha querida!  Bem vinda ao recreio:  a brincadeira hoje é uma batalha de cabo de guerra, e você deve continuar botando  toda a força dos seus braços e pernas, na tentativa de mover o inimigo, sem perder esse estoicismo de núcleo faiscante.
 
Mas o inimigo era feroz, e não se movia. Então, alguém teve a idéia: Se o elefante não vai a meca, que meca vá até o elefante. Desceu o pastor do púlpito, com o seu vidrinho poderoso de  óleo ungido, e em nome do Senhor Jesus, expulsou o demônio, que rugindo as suas sujidades saiu,  e foi gritar o seu refrão em outras pastagens.

Mas Cida? Cida novamente se perdera. Premida contra  a parede, a brincadeira acabara. Voltara a ser de novo a obreira cor-de-rosa sem a chama da vida. A vida abismal que fizera dela a alegria das terças feiras em nossa casa.

No outro dia, terça feira, ao avistá-la no apertadinho da saia xadrez  e da blusa branca de manga comprida, constatei o que já sabia:  Danou-se tudo!