JÔ CALÇADOS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

Já vou avisando logo que esse texto não tem muito sentido para aqueles que não moram em Cruzeiro. Mas tem todo sentido para aqueles que se sentem peregrinos no planeta terra. Sei que desde a última terça feira o meu povo espera por essa mensagem e mesmo agora não me sinto ainda em condições de liberá-la.

Não quero parecer excessivamente melancólica e depressiva. Mas a morte é de uma violência que nos coloca a todos em estado de prostração psicológica. Sim, somos seres espirituais, mas que falta nos faz a presença de uma pessoa à qual estávamos acostumados a chamar pelo nome, a dedicar pensamentos, sentimentos, bons presságios, amor, cuidado. De repente, o vazio. De repente, nos vemos sem saber para onde direcionar o afeto que ainda sentimos e que parece nos pesar na alma, como chumbo derretido a milhões de graus centrígados. 

Sei que como pregadora do Evangelho que sou, como ensinadora da Palavra que sou, como mulher de fé que sou, não posso sair por aí confessando publicamente a minha desolação por essa malvada que nos leva o melhor da vida: a própria vida. Mas confesso: estou prostrada. A morte da Jô me deixou mais uma vez, sem rumo no planeta terra.

Tenho o meu rumo bem marcado no caminho que conduz ao céu. Todo mundo sabe que sou uma convicta cidadã celestial e que creio na obra redentora que o Senhor Jesus fez por mim. Mas pôxa, ainda estou na terra. Ainda clamo por presenças e grito por ausências. Ainda quero meus filhos ao meu lado, meus netos lambuzando o meu sofá  de chocolate, meus amigos bem guardados para que eu possa vê-los à hora em que quiser. Ou que for necessário.

Não sou muito de visitar as pessoas. Só de vez em quando, muito mais de quando em quando, do que de vez em vez. Mas é porque sei que elas estão ali, disponíveis ao meu afeto. É porque sei que elas estão vivendo a rotina sagrada de cada dia. Quando se quebra a rotina, por alguma doença ou por algum desatino desses que acontecem, de repente, e nos deixam a todos desolados,  então me faço presente. 

Mas a minha ausência também é uma forma de amar. É uma forma de dizer: se precisar, me chame. Se não precisar, deixe-me viver a minha vocação solitária para estar disponível para você em tempos de dor.

Não estou fazendo aqui uma homenagem para a nossa Jô que nos chamava a todas de "amor" com voz  doce,  calma, e  modulada. Quase um hino a voz da Jô. Não quero lembrar o quão guerreira ela foi enfrentando essa terrível doença que por fim  a debelou. Não quero louvar a sua saga de mulher trabalhadora, incansável, de múltiplas atividades, às quais ela se entregava para só descansar quando as tarefas acabavam, à noitinha,  e não quando o corpo cansava.
 
Não quero fazer uma homenagem póstuma porque tudo isso me parece tão inútil. Não autorizo ninguém a publicar esse texto em nenhum jornal para que todos possam ler. Não é esse o meu objetivo nesta hora em que choro a morte da Jô, de forma tão dolorosa. 

O meu objetivo é dizer que Jô se foi, e que não está nem mais aí  para as nossas considerações sentimentais ou filosóficas. Jô entrou em paz, nós é que ficamos em guerra. Dessa guerra que começa logo cedo, quando passamos em frente à loja dela e não vemos mais o letreiro : JÔ CALÇADOS.  Dessa guerra que continua, quando viramos  a esquina e nos deparamos com  a porta  fechada do seu salão de beleza.  Dessa guerra que fica mais acirrada quando olhamos para cima e avistamos Dona Alice sentada na varanda, muda sombra solitária.
 
Essa é a dor mais solitária: a dor da perda de um filho.

Eu não sei o que dizer, quando só sei sentir. Quando sinto aos poucos, aos pulos, em intervalos que dão e passam, ainda sei dizer alguma coisa. Mas quando sinto aos borbotões não sei dizer quase nada. Ligo para a Sandra e ela me diz: "mãe, o que é essa vida? " "Não sei, minha filha, não tenho resposta." Tenho resposta para a vida que Jesus nos apresentou, vida perfeita, vida inerente, vida eterna, vida que nunca acaba. Para essa tenho a resposta que Ele nos deixou. Sei de cor, sei explicar, sei sentir, sei segurar forte em minhas mãos essa vida, que é  a única vida que realmente importa.

Mas esta, esta é tão precária. Esta nos obriga a apagar os vestígios da pessoa rapidamente,  deletando o orkut, retirando os letreiros, apagando os luminosos que registram o nome na vã esperança de que, nessa pressa de apagar os vestígios da pessoa que viveu possamos minimizar a brutalidade que nos atingiu em cheio na cara.

Sois mortais, vós todos! Vós que gastais a vossa vida em reuniões filantrópicas, em chás beneficientes,  em clubes de serviço, em bailes, e em jantares de cristais transparentes. Sois todos mortais. Esse é o recado que tenho para cada um: jovem, homem, mulher, adulto, velhos e crianças. Sois mortais no útil e no fútil.

Jô você não é mais  mortal. Você alcançou a imortalidade dos que não morrem mais. 

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"Perece o justo e não há quem considere isso em seu coração que os homens compassivos são retirados antes que venha o dia do mal? Entrarão em paz, descansarão nas suas camas os que houverem andado na sua retidão." Isaias 57:1-2
 
Jô descanse em paz!