POR ONDE ANDAM VOCÊS?
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI

Não evoco os acontecimentos do início do século passado,  porque deles não tenho lembrança.

Olhando para este retrato sépia familiar, evoco o perfume de alfazema espalhado pelo ar, a pureza do linho branco,a beleza, o ar romântico, a elegância das damas e dos cavalheiros que se tornaram petrificados, na posição em que escolheram ser fotografados.

Quem cruzou as pernas, de pernas cruzadas ficou; quem sorriu, o sorriso congelou; quem entrelaçou as mãos, não pôde mais soltá-las; quem pôs sapato apertado, ficou para sempre calado;  quem desviou o olhar, perdeu a vez de voltar; quem sustentou o olhar, quedou-se  a nos observar.

 Quem quis dizer para a câmera: sou sério(a) , sizudo(a), ou apreensivo(a), para sempre será sério(a), sizudo(a) e apreensivo(a). 

As matronas buscaram esconder mas quem mandava ali,  se pode deduzir aqui : quem senta no trono é  rei, rainha é para inglês ver.

Olhando  esse retrato sépia familiar, sei quais delas eram alegres, felizes, e acostumadas com a vida.
 
Quais  eram amarguradas, mal amadas e de certa forma, revoltadas.
 Quais eram solicitadas e quais eram  rejeitadas. 
Quais eram as boazinhas e quais eram  as bruxinhas.
 Quais eram as invejosas e quais eram as generosas. 
Quais quiseram retocar o nariz e não tiveram Pitanguiz.
Quais tiveram várias cores de carteiras, que combinavam com  as várias cores de vestidos. 
Quais disfarçaram com as mãos, a falta do acessório tão querido. 

 Sei quais  dessas damas  quiseram  mirar além dos horizontes e lhes negaram um horizonte. 
E quais quiseram  mirar o umbigo, e viveram felizes mirando o umbigo.
 
 A única que sorriu, para sempre me atraiu. Um dia, serei como ela. Tão feliz e tão singela.
Mas hoje me pareço mais com a dama de olhar comprido: a quarta da esquerda para a direita. Nem ligo para o feio do vestido.
 
A que segurou os joelhos com as mãos, quis dizer: "eu não tenho uma carteira, mas tenho uma direção. Em mim ninguém manda, não." Por essa tenho simpatia, mas me falta a empatia. 

Enrolada que sou.

A que não cruzou as pernas disse: "quero ser diferente." Mas morreu, no meio da sua gente. 

Querer só não adianta,minha filha.  Para ser diferente tem  que  mostrar garras e dentes. 

 Todas pareciam  contentes, mas não estavam. Estavam apenas carregando o  fardo sem curvar os ombros, sem franzir a testa, disfarçando a morte interna que as corroía a cada dia.
 
Quando ouviam música italiana choravam, mas se chegava alguém, na certa,  era resfriado.   

Meu Deus, para onde foram os fardos que as damas e os cavalheiros arriaram ao chão? 

Vieram parar diretamente em minhas mãos? 

Olhando para este retrato sépia familiar, sei quais desses cavalheiros eram valentes e corajosos,  e quais eram medrosos .

 Quais  eram  os mais ricos e quais  eram os mais pobres. 
Quais os que decidiam e quais os que obedeciam.
Quais  os limitados e quais  os inteligentes.

Sei de quais  deles, os demais diziam : "esse é mandado pela Maria". 
 
Também sei quem era o chefe do clã e qual a respectiva chefe da casa. E consequentemente, a chefona do clã inteiro.  Essa dona era bem mandona.

Sei que todas as nobre damas  manobravam  os  circunspectos  cavalheiros, e, na cama, entre os lençóis,   decidia-se o  melhor.  

Entre elas, porém,  apenas sorriam e  de nada sabiam. Sonsas eram por inteiro, mas  só na frente do vespeiro.

Tolerava-se apenas  que lhes coubesse a  sugestão de quantos metros de tecido deveria ser comprado para repartir entre as nove famílias, com o resultado financeiro da próxima colheita.Que  serviria para a confecção  de lençóis, camisolas,  camisolões, panos de prato, calcinhas, e toalhas de mesa. Naquele tempo, prontas,  não se achavam tais lindezas. 

Nem absorvente higiênico. Só toalhinha.

Sei que a escolha do tecido incluia um ligeiro mal estar: entre linhos, veludos e sedas, com qual ficar? 

 Estela queria o xadrez, Mariquinha preferia o listrado,  e Madalena  o branco imaculado. Francisca era apaixonda por um amarelo, mas Rosinha e Imaculada, se uniam no caramelo.

Hoje me vem à lembrança, por este instântaneo familiar, o perigo oculto que existe ao se posar para uma foto. Quero libertar a todos dessa imobilidade e não consigo. 

Meu Deus, o que faço eu comigo? 

 Rasgo todas as minhas fotos e destruo os negativos!



* A foto é do clã Bernardelli - diretamente da Itália para o Brasil, - a quem peço perdão por esta pífia inspiração.