PÉ NA BUNDA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI
Mas então é assim? Você liga para mim- a cobrar, de celular para fixo - e diz : "amanhã, não vou trabalhar. Machuquei o pé, não consigo andar." E fica tudo por isso mesmo? Você sem conseguir andar, e eu sem conseguir respirar? Até que o seu pé fique curado e eu esteja morta?
Como me deixei ficar nessa total dependência, sem nem sequer perceber que, um dia, você machucaria o pé? Como não avaliei que o seu amor por mim não ia além de um pé machucado?
A sua vastidão em minha vida, tem sido além dos limites éticos suportáveis, convenhamos. Mas isso não é culpa a que se lhe possa atribuir. Isso é um castigo que recebo, tardiamente, por nunca ter feito a lição de casa.
Isso vem de longe: vem da infância, quando minha mãe cortava o bife, para que eu não o comesse aos pedaços, arrancados. Vem do sapato pulseirinha, que eu não abotoava, porque sabia que não passaria o portão da rua, sem que ela o tivesse abotoado - de quebra, a meia soquete, ganhava uma charmosa viradinha. Vem da juventude, quando meu irmão, percebendo a má criação, dizia: "isso aí é um volume" e eu jogava para trás a cabeleira, empinava o nariz, e sacudia os ombros, odiando o sentido concreto da palavra, e amando o figurado. Tão bom me era, ser um volume em casa. Com aquela vasta cabeleira negra, aquele corpo de gazela, e aquele cérebro de galinha inteligente.
Fui um volume bem protegido, até a morte da minha mãe. Se me faltava a Nalva da época, ela me era a Nalva, e o fazia como se, ser Nalva para mim, fosse para ela, a função de maior relevância no universo.
Minha querida mãe! Nesse dia, comíamos fora. E eu acabava por achar tão gostosa a fazeção doméstica, daquele jeito fácil. Quando eu não sabia, ela socorria. Quando eu cansava, ela me fazia descansar, enquanto ela: ela nunca se cansava! E, invariavelmente, seguia-se a frase tranquilizadora: " o dia está inteiro." Mesmo que fosse 5 horas da tarde, o dia sempre estaria inteiro.
Que saudades de você minha mãe! Você nunca machucou o pé. Você nunca me deu com um pé na bunda, exatamente onde me dói -agora - o pé machucado de Nalva.
É, esse sentimento de desamparo me vem de longe. Vem do tempo em que minha mãe dizia para quem quisesse ouvir: "Ana só tem jeito para os estudos. Não adianta forçar, que além dela não aprender, sobra muita bagunça para mim limpar".
Ela dizia: "para mim limpar" e eu sei que "mim" não pode ser sujeito, mas ela não sabia. E por que eu sei? Eu sei da mesma forma que sei que -"por que"- pergunta é separado e -"porque"- resposta é junto. Porque só levava jeito para os estudos. E por que ela não sabia? Porque não levava jeito para os estudos, oras.
Mas hoje: hoje! Véspera de segunda feira! Hoje, de que vale o "mim" o "por que" e o "porque" se amanhã a casa vai estar por limpar, a roupa por lavar, o almoço por fazer, e eu não sei por onde começar, e nem por onde terminar? E não tenho mãe, nem Nalva, nem mesmo a diarista disponível para me ajudar?
Pensando bem, também não sei empregar direito o "onde" e o "aonde", e pensando melhor, não adianta disfarçar: estou em apuros e terei que me virar!
Assim sendo, hoje não é o dia de "onde" e nem de "aonde", é dia de "por onde". Por onde darei conta do recado, eu que só sei escrever recados?
Ah, nesta segunda feira em que, implacavelmente, me verei sem mãe e sem Nalva, queria poder, enfim, conquistar a alforria de não depender de outro, escrava que tenho sido de mim mesma, das minhas limitações domésticas, desde os séculos dos séculos.
Queria poder fechar a porta desta casa de milhões de metros quadrados, libertar meus bichos em algum lugar encantado, botar uma mochila nas costas e sair pelo mundo, olhando flores e admirando pirilampos. De repente, me tornei tão natureba...!!!
Sem ter que ouvir a Silvia dizer: "mãe, você é uma mulher ou um saco de batatas?" ( sou um saco de batatas... de batatas baroas.) Sem ter que ouvir Ivo espumando a sua doce vingança de milhões de anos: "larga um pouco desse computador e vá cuidar da sua casa. É sua, minha filha."
E eu quero lá ser dona de casa, meu filho? Eu quero é voltar para o útero da minha mãe, e ficar ali até o pé da Nalva sarar. Sem o peso da domesticidade sobre mim. Sem ser dona de nada.
Eu quero a liberdade compulsória de apenas ser nada.
Sendo essa que sou.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI
Mas então é assim? Você liga para mim- a cobrar, de celular para fixo - e diz : "amanhã, não vou trabalhar. Machuquei o pé, não consigo andar." E fica tudo por isso mesmo? Você sem conseguir andar, e eu sem conseguir respirar? Até que o seu pé fique curado e eu esteja morta?
Como me deixei ficar nessa total dependência, sem nem sequer perceber que, um dia, você machucaria o pé? Como não avaliei que o seu amor por mim não ia além de um pé machucado?
A sua vastidão em minha vida, tem sido além dos limites éticos suportáveis, convenhamos. Mas isso não é culpa a que se lhe possa atribuir. Isso é um castigo que recebo, tardiamente, por nunca ter feito a lição de casa.
Isso vem de longe: vem da infância, quando minha mãe cortava o bife, para que eu não o comesse aos pedaços, arrancados. Vem do sapato pulseirinha, que eu não abotoava, porque sabia que não passaria o portão da rua, sem que ela o tivesse abotoado - de quebra, a meia soquete, ganhava uma charmosa viradinha. Vem da juventude, quando meu irmão, percebendo a má criação, dizia: "isso aí é um volume" e eu jogava para trás a cabeleira, empinava o nariz, e sacudia os ombros, odiando o sentido concreto da palavra, e amando o figurado. Tão bom me era, ser um volume em casa. Com aquela vasta cabeleira negra, aquele corpo de gazela, e aquele cérebro de galinha inteligente.
Fui um volume bem protegido, até a morte da minha mãe. Se me faltava a Nalva da época, ela me era a Nalva, e o fazia como se, ser Nalva para mim, fosse para ela, a função de maior relevância no universo.
Minha querida mãe! Nesse dia, comíamos fora. E eu acabava por achar tão gostosa a fazeção doméstica, daquele jeito fácil. Quando eu não sabia, ela socorria. Quando eu cansava, ela me fazia descansar, enquanto ela: ela nunca se cansava! E, invariavelmente, seguia-se a frase tranquilizadora: " o dia está inteiro." Mesmo que fosse 5 horas da tarde, o dia sempre estaria inteiro.
Que saudades de você minha mãe! Você nunca machucou o pé. Você nunca me deu com um pé na bunda, exatamente onde me dói -agora - o pé machucado de Nalva.
É, esse sentimento de desamparo me vem de longe. Vem do tempo em que minha mãe dizia para quem quisesse ouvir: "Ana só tem jeito para os estudos. Não adianta forçar, que além dela não aprender, sobra muita bagunça para mim limpar".
Ela dizia: "para mim limpar" e eu sei que "mim" não pode ser sujeito, mas ela não sabia. E por que eu sei? Eu sei da mesma forma que sei que -"por que"- pergunta é separado e -"porque"- resposta é junto. Porque só levava jeito para os estudos. E por que ela não sabia? Porque não levava jeito para os estudos, oras.
Mas hoje: hoje! Véspera de segunda feira! Hoje, de que vale o "mim" o "por que" e o "porque" se amanhã a casa vai estar por limpar, a roupa por lavar, o almoço por fazer, e eu não sei por onde começar, e nem por onde terminar? E não tenho mãe, nem Nalva, nem mesmo a diarista disponível para me ajudar?
Pensando bem, também não sei empregar direito o "onde" e o "aonde", e pensando melhor, não adianta disfarçar: estou em apuros e terei que me virar!
Assim sendo, hoje não é o dia de "onde" e nem de "aonde", é dia de "por onde". Por onde darei conta do recado, eu que só sei escrever recados?
Ah, nesta segunda feira em que, implacavelmente, me verei sem mãe e sem Nalva, queria poder, enfim, conquistar a alforria de não depender de outro, escrava que tenho sido de mim mesma, das minhas limitações domésticas, desde os séculos dos séculos.
Queria poder fechar a porta desta casa de milhões de metros quadrados, libertar meus bichos em algum lugar encantado, botar uma mochila nas costas e sair pelo mundo, olhando flores e admirando pirilampos. De repente, me tornei tão natureba...!!!
Sem ter que ouvir a Silvia dizer: "mãe, você é uma mulher ou um saco de batatas?" ( sou um saco de batatas... de batatas baroas.) Sem ter que ouvir Ivo espumando a sua doce vingança de milhões de anos: "larga um pouco desse computador e vá cuidar da sua casa. É sua, minha filha."
E eu quero lá ser dona de casa, meu filho? Eu quero é voltar para o útero da minha mãe, e ficar ali até o pé da Nalva sarar. Sem o peso da domesticidade sobre mim. Sem ser dona de nada.
Eu quero a liberdade compulsória de apenas ser nada.
Sendo essa que sou.
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Em tempo: nobres colegas recantistas não aceito sugestões que não me venham ao encontro com um balde e uma vassoura. Pago o valor da diária.
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*Imagem pesquisada no google.