MUAMBEIRA POR UM DIA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

Esta é a segunda vez que troco o título desta crônica: agora vai ser:  "Muambeira por um dia." Acho que esse título ficou melhor.

Então foi assim: No domingo mesmo, Nalva veio aqui em casa e Ivo lhe arrancou a unha do dedão do pé.  Não, não aqui em casa, mas no hospital. O hospital fica em frente de casa. Aqui tudo é tão perto, que sempre fica em frente. 
 
Na segunda feira, a minha diarista conseguiu um dia de folga - por obra e graça de Deus - e Nalva fez questão de vir, manquitolando mesmo, para coordenar a casa, cuidar dos meus bichos e coisas tais.  E eu fui para o Paraguai, que a viagem já estava marcada com certa antecedência e ficara ameaçada pelo súbito trupicão de Nalva.  Nalva me ama de verdade!
 
E vocês pensaram que eu estivesse entre baldes, vassouras e esfregões? Não estava! Deus é grande em minha vida! Estava determinado que eu fosse passear, em plena segunda feira, porque aqui em minha cidade é um feriado prolongado: Hoje se comemora o aniversário da cidade e ontem foi ponto facultativo.

E agora, pronto: antes de falar da viagem ao Paraguai, tenho que falar desse descalabro que se chama "ponto facultativo". Ou seja faculta-se ao trabalhador - ir ou não trabalhar- em um determinado dia do ano, em meio aos outros 364 dias do ano, em que lhe é compulsória a presença ao trabalho. O que acontece, todo mundo já sabe: todas as repartições públicas fecham, - que ninguém será tão repetitivo a ponto de querer fazer nesse dia, o que se faz nos outros dias do ano, podendo não fazê-lo. E aí vem a minha proposta muito mais lógica: por que não chamar o ponto facultativo de ponto festejativo?

Ponto festejativo em minha cidade, significa muitas pessoas indo ao Paraguai- distante daqui 130 km-  comprar umas muambinhas básicas, que aquilo lá é um paraíso de utilidades e inutilidades domésticas, aparelhos eletrônicos, artigos para decoração, tudo vindo da China e agora nos últimos tempos, do Brasil. Compra-se lá o mesmo artigo que se compra aqui, com um preço bem mais acessível. Coisas do comércio exterior, que eu não entendo, mas abomino. E compro. 

E fomos: Ivo, eu e Moacir. Moacir é nosso vizinho, quase um  irmão. No caminho, começamos pelas fofocas da cidade, pelas coisas tristes e alegres que ocorreram com a nossa gente, e depois que se esgota o mais rasinho, vamos nos aprofundando: política, saúde, filosofia, e Deus. 

Sempre tenho que estar preparada para as indagações nada fáceis que Moacir me faz, pelo caminho,  a respeito da Bíblia. Moacir é um leitor convicto da Palavra de Deus, mas quando tropeça em algum fato que não combina com a idéia que tem de Deus, ele me chama para resolver. E eu nem sempre sei como resolver, porque Deus não se resolve, Deus se complica de um jeito gostoso. O jeito gostoso do complicado de Deus é assim como quando uma criança está à beira de um abismo e o pai abre os braços e lhe diz: Não tenha medo, venha! E ela se solta, sem fazer cálculos. Tem hora que não entendo Deus, mas rodeada de abismos, eu me jogo em seus braços:  Maior seria o risco de querer entendê-lo do que simplesmente abraçá-lo. E assim nos abraçamos. 

Outro assunto que abordamos com frequência, e que deriva desse, é sobre a antiguidade da terra, as galáxias, a via Láctea, o buraco negro e a origem do homem. Ninguém ali é cientista, mas todo mundo dá pitaco.  Ivo é o mais cientificamente correto porque não gosta de ler, mas em compensação, assiste a muitos documentários.  O buraco negro é a sua grande fascinação.  Moacir não aceita a ciência, só a religião. E eu tomo a posição de defender Moacir - mesmo me parecendo que ambas não se antagonizam- porque sinto que a sua fé, tão desprovida de argumentos científicos, é muito mais relevante do que as provas com carbono 14, que Ivo teima em nos inflingir.
 
Moacir fica indignado com essa história de que a terra tem bilhões de anos. Ele acha que os cientistas declaram o que querem, e ninguém ousa contestar porque não tem como comprovar- nem o que eles dizem, nem o que se poderia desdizer. Para ele, tudo são especulações.  Os testes com carbono 14,  não o demovem da fé de que o mundo foi criado há mais ou menos 7.000 anos, pelos seus cálculos bíblicos. Na verdade, Moacir sabe, mas prefere não saber, e eu louvo a sua coragem de ignorar o consenso geral, apenas pelo seu próprio bem estar espiritual. 

Que, se você não sabe,  revelo agora.  Coisa  maravilhosa é pensar com desespero: apenas Deus! Nesse pensar, Deus se revela.

Acho isso tão lindo, e Ivo acha divertido, numa total falta de sensibilidade, para captar as ondas espirituais que emanam do nosso amigo.
 
A Palavra de Deus proclama em Eclesiastes: "Não há limites para fazer livros e que o muito estudar é canseira e enfado." Em seguida completa: " De tudo o que se tem ouvido a conclusão é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos, pois isto é todo o dever do homem."
 
Moacir está cumprindo os dois mandados: ignorando os livros, os achados da ciência mais recente, e temendo a Deus e guardando os seus mandamentos.  Ivo não sabe o quanto isso lhe faria bem. E enquanto ele não sabe, nossas viagens para mim, são extremamente reflexivas, porque cada um de nós, tem um único objetivo: o encontro máximo de um ser  consigo mesmo, através da diversidade que há no outro.

Paraguai para Ivo, eu, e Moacir é  isso: uma viagem na paz de Deus; algumas bugigangas que se compram no embalo da emoção consumista - e que só depois  se percebe a total inutilidade de tê-las comprado; muito cansaço no final da tarde,  e a volta abençoada para casa, com o saldo do amor, da alegria, da indignação, da perplexidade, da vida, com as suas tramas subjetivamente traçadas no escondidinho -  uma fome que cada um de nós, acabou de revelar para o outro.

Esta é  uma fome endêmica, uma fome necessária para nos fazer  "ver os servos a cavalo, e os príncipes, andando a pé, como servos sobre a terra." ( Eclesiastes). 

Estamos em casa, de volta para o futuro. E a guerra do Paraguai continua sendo unicamente nossa, até a próxima viagem.