SHIRLEY TEMPLE E SILVIO SANTOS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.



Tenho que concordar: é verdade que enveredo por estranhos caminhos em minhas crônicas, e que, invariavelmente, esses caminhos levam a Deus. Mas isso não acontece apenas nas crônicas: acontece também na vida.
 
Por conta disso, sou de uma inabilidade social tão grande, que o mundo fica de um lado, e eu do outro. Vagamente nos entendemos, mas isso não significa que nos hostilizamos. Somos um para o outro como o estrangeiro que, de chegada num país, não fala, e não entende o idioma local, mas sorri para os nativos da terra, e os nativos da terra sorriem para ele.  E admiram aquele ser. E aquele ser admira aqueles que o admiram. Tudo de longe, porque o de perto causaria muita estranheza.

Senão vejamos: Acompanhei o Ivo a um jantar do Rotary, meses atrás. Lá me sugeriram se eu queria  escrever alguma coisa, para uma tal de Cápsula do Tempo que será aberta pelo Rotary International daqui a 50 anos, com depoimentos do mundo todo. E eu respondi que sim, que podia escrever tal coisa.  E que essa coisa seriam duas linhas: "Esta que vos escreve agora, já morreu faz tempo. Saiam correndo desse clube  e gastem mais tempo buscando  a Deus  porque a eternidade virá para todos." 

Falei isso porque pensei isso. Mas Ivo não gostou de que falasse o que pensei. Então, para não ter que falar o que não penso,  não falo, não vou, e fico em casa pensando o meu pensar solitário.

Minha inabilidade social é muito próxima da Shirley Temple do Silvio Santos: ela chama de verruga o que é ruga, mas dentro do equívoco ela é toda real.  E o que nela existe de mais equivocado é exatamente aquela parte que nos atrai por ser tão verdadeira. 

 Sinto que sou assim: Uma realidade equivocada. Que atrai a uns e repele a outros.  

Daqui a 50 anos não sei o que serei. Hoje sei o que disse Jesus quando recomendou aos seus discípulos: "Se não vos fizerdes como crianças, não herdareis o reino de Deus".
 
Daqui a 50 anos, espero ter herdado o reino de  Deus e obtido a plenitude da filiação. E como eu gostaria que todos os homens  também herdassem e obtivessem a plenitude da filiação,  então, entro no circuito social com essa idéia fixa: fazer com que sejamos verdadeiros, até o limite da possibilidade de - um  dia- nos tornarmos puros como crianças. Com cheirinho de leite recém devolvido. Cheiro suave, sabe? Coisa gostosa. Cheiro de boca de cachorrinho recém nascido você já sentiu?  Tão bom!  Pode ser de criança também. É que na falta de crianças aqui em casa, substituí por cachorros.

Nesse processo de inabilidade social - em que assumo estar próxima de obter a nota máxima-  há uma coisa que me intriga: sinto-me tão amada pelos nativos da terra! Fico intrigada com isso porque esse amor, entre seres tão díspares, pode significar piedade e piedade eu não quero. Só quero o amor. Então recebo só o amor. E também retribuo com amor.
 
Quando acompanho o Ivo nos jantares, ao iniciar a reunião, o mestre de cerimônias cita o meu nome e diz da alegria de me ter ali e eu fico toda iluminada, sem saber o que fazer direito com a iluminura desse primeiro  amor, que me veio sem que eu estivesse esperando. O rubor me toma e a ternura também.
 
Os outros, que se seguem, eu já espero.  A tribuna é ocupada por novos  companheiros. E todos citam o meu nome e todos dizem da alegria de me ter ali, e eu fico cada vez mais iluminada, até que o meu amor também transborda e digo exatamente o que se espera que eu não diga numa circunstância como aquela.
 
Digo o que o sei dizer: Que no meio de um jantar humanístico Deus espera ser o centro. 

Ali tem tudo: tem serviço social, tem amizade, tem companheirismo, tem decência, tem ordem, tem filantropia, tem o que o mundo espera que se tenha na reunião de um clube de serviço. Mas não tem o ensino da Palavra de Deus. Função que eu poderia desempenhar,  se me deixassem. Como não me deixam,  então que ninguém coma do meu queijo. Como sozinha em casa mesmo.  

Não adianta: Corro o mundo e não me movo nem de mim e nem de Deus!  Se me querem, hão de querer a Ele em mim.

Silvio Santos aceita que a sua Shirley Temple  anuncie, ao microfone, que ele tem rugas. Eu quero um microfone para  anunciar as rugas do mundo,  e não me dão. Continuo a esperar enquanto escrevo.



* A foto é de Maisa Silva, a nova "Shirley Temple" .