DES-MILINGUIDA E SMILINGUIDO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
 

Ontem fui pregar em um templo evangélico. O que ensinei ali, não vou ensinar aqui. Quando tenho a pretensão de ensinar, escrevo sob a categoria "Mensagens Religiosas." Assim liberto da aprendizagem todos aqueles que não querem aprender, porque nem Jesus forçou as pessoas a entrar -sem fome -nas suas bodas. Portanto, cabe-me respeitar a sua falta de fome. Está satisfeito? Ruim para você. Bom para mim, que vivo com fome. E como! Do verbo comer.

Você já reparou como eu sou des-milinguida- aquela parente distante do Smilinguido? Já notou que grandes olhos de des- milinguida eu tenho? Já percebeu que dentro de mim há  pedacinhos de cristais quebrados cuja utilidade me é de um recurso extremo?
 
Mas você não: você é inteiro!
 
Um dia, eu quis ser inteira. Até descobrir que, se permanecesse inteira, se não fosse esquartejada, não poderia  cumprir a minha missão. Alguém já viu uma grande vaca alimentar multidões, se estiver inteira? Não consegue. Precisa-se matar a vaca, esfolar a vaca, cortar a vaca em pedaços, cozinhar a vaca e distribuir um pedacinho de vaca para cada um que tiver fome. 

Então: estou no processo de esquartejamento e cozimento, e  esses pedaços de mim  também são os pedacinhos de cristais quebrados que reverberam e lhe atraem. 

Mas afinal: sou uma vaca ou sou um cristal? Sou ambos. Um cristal para quem só quer o brilho do cristal;  e uma vaca, para quem tem fome. 

Aqui só tem o cristal. Em "Mensagens Religiosas" você encontra a vaca  morta, esfolada, esquartejada, em franco processo de cozimento. É só comer. 

Mas você é inteiro: um grande  vaso de cristal inteiro. Um grande boi reprodutor no pasto. E sendo inteiro que é , vai permanecer inteiro com o que vou contar aqui: uma miudezinha de nada, que reflete bem o que é o homem.
 
Então fui pregar, ontem a noite, numa congregação cuja audiência  não ultrapassava o número de  50 pessoas.  O fato objetivo é: fui pregar.  O tema foi: O Jovem Rico do Evangelho de Mateus, no qual inseri um breve falar sobre os 12 discípulos e as 12 tribos de Israel . E acabou-se. 

Vamos agora aos fatos subjetivos: esses me fascinam. Estava lá um irmão, jovem ainda, que me intrigou durante todo o culto. Enquanto as pessoas pareciam me ouvir, atentamente, de olhos bem abertos, o jovem   permaneceu, todo o tempo, de olhos fechados. Sentado, na última fila, tinha o apoio da parede para encostar e por vezes,  dava-me  a desagradável impressão de  dormir, para logo depois se mexer e me mostrar que não: estava acordado. Mas os olhos permaneciam cerrados. Contrição, zelo, quebrantamento? O que queria dizer aquilo? Eu não ousava pensar que fosse sono, desinteresse, cansaço, porque se pensasse,  perderia o ardor que me fazia em chamas. 

Meu Deus, como um pregador precisa de um único olhar de reciprocidade, para dar continuidade ao pensamento. Porque mesmo a inspiração precisa de pensamento.  E às vezes, o pregador, só encontra gente de farol baixo. Gente que não ajuda a iluminar a escuridão da sala.
 
Mas ontem, não. Ontem os faróis estavam bem acesos: menos o do irmão, completamente apagado.

O culto terminou, e  aí, quando não precisava mais, o irmão abriu os olhos. Mas não se mexeu do lugar em que estava. A igreja foi esvaziando e eu fui ficando, cumprimentando a todos, antes de sair e voltar para casa. Eu estava cansada, mas feliz: a sensação de missão cumprida traz paz e felicidade.
 
Quando estávamos apenas eu e a pastora, já na porta, vi que  estava ali: uma sombra muda, de camisa preta, à minha espera. 

Sem nenhum preâmbulo, com olhar feroz e desta vez bem aberto,  ele disse: "Não concordo com o que você falou." Ele poderia ter dito: "Não entendi o que você falou." Amenizaria. Mas ele disse mesmo assim: "Não concordo com o que você falou."  

Levei um choque, e ainda assustada, respondi com a voz mais firme que pude encontrar dentro de mim: "Com o quê, especificamente, o irmão não concorda? - Pegue a sua Bíblia- eu disse.  Sim, porque se ele não concordava com alguma coisa, teria que provar biblicamente aonde estava o meu erro. E aí, sem pegar a Bíblia, ele disse: " como os 12 apóstolos irão julgar as 12 tribos de Israel, se Judas era um dos 12  e morreu daquele jeito que a gente sabe?"

Ah, então era isso. Para isso, ele estivera de olhos fechados: concentrando-se para o ataque final? 

 Mas isso era tão fácil, que nem acreditei: Mostrei a ele que Judas fora substituido por Matias e ele respondeu que sim, que sabia que Judas tinha sido substituido por Matias. Se sabia, por que  a interpelação? - Pensei. E ficamos nos olhando. Ele ainda sustentava um olhar duro, de mágoa, como se Judas fosse eu. E eu apenas olhava, e olhando era eu quem perguntava.

 Perguntei se ainda tinha alguma dúvida. Respondeu que "não," que ele não tinha dúvidas, que ele tinha certezas, que  sabia que Judas tinha sido substituido por Matias. Eu esperava que ele acrescentasse: "Mas esqueci".
 
E ele não acrescentava e permanecia parado, mudo e fixo, mas o olhar já não se sustentava. O embaraço que o tomou, esse dizia: "Eu sabia, mas esqueci." Admitir, jamais: Admitir, seria ter os olhos muito abertos,  e os dele continuavam fechados.

E nisso ficamos, e nisso nos separamos. Ele foi embora com o Matias no lugar de Judas, para nunca mais esquecer, e eu vim-me embora com a sensação de que durante o culto um espião da KGB se infiltrara entre nós e tentara me algemar, e me prender, e me açoitar, e me enviar para a câmara de gás, só porque Matias substituíra Judas e o espião esquecera.  

Deus, como são complexos os seres humanos! Entre tantas coisas que preguei naquele lugar, Judas se lhe entalou na garganta, e com um Judas entalado ele ficou, e na saida, com uma machadinha na mão,  me cercou.  Ser pregador da Palavra é tão perigoso!
 
Tão perigoso quanto escrever no Recanto. Ainda bem que esquartejada já sou.