O PRAZER DE UMA VIDA NORMAL.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.


A visita seria rápida: De sexta feira, às 14,00 horas, até às 2,00 horas da madrugada de domingo. 

 Esse é o horário em que Ivo acorda, e imediatamente, coloca o pé na estrada.  E eu, passageira, que sou, não tenho  outro remédio, senão embarcar na jardineira, sempre de cara feia,  e  deitada no banco de trás. Durmo e babo até a metade da viagem. Depois acordo, e já estamos na metade do caminho. Nessa altura, o mal humor passou, peço café e ele pára.  Ivo é bonzinho e é bom motorista, o que me possibilita tomar café,e dormir de novo- sem babar-  até em casa.

Mas estamos na ida, e não na volta.
 Marlene,  a ajudante doméstica  da Sandra, logo que me viu chegar,  foi abrindo a boca e mostrando: 

-"óh rranquei um dente". Um despropósito de saudação, até para tal criatura. Em delicadeza de oferenda, ela me inflinge a desagradável visão.  

Eu: - "éh, que legal." - Sem saber o que dizer, digo essa patetice.  

Mas o pensamento foi longe e direto ao ponto. Acho que sou muito vivida, ou muito esperta, ou muito aguda: saquei tudo na hora.  

Sandra tem um acordo com ela: Quando não recebe visitas aos sábados, ela não precisa vir trabalhar, mas quando recebe visitas, ela deve vir trabalhar. E Marlene, estava preparando a cama para dormir até mais tarde, no dia seguinte.   Percebi,   assim que ela abriu a boca e me mostrou as profundezas do seu ser.

Mais tarde, de longe, eu a ouvi dizer à Sandra: "meu dente ( que dente?) está doendo." Sandra - que é dentista- abriu o bocão, examinou o local e respondeu: - "que estranho, o alvéolo está completamente cicatrizado, e esse dente foi extraído na segunda feira, não era para estar doendo."  Deu a ela mais analgésico, mais antiinflamatório, e lá se foi Marlene, completamente medicada.

No sábado, a casa ainda dormia quando levantei, fiz café, tomei café, olhei  a louça sobre a pia, e pensei: "Marlene virá? Lavo ou não lavo?" 

Às 7,00 horas da manhã,o telefone tocou, e antes de atender,  eu já sabia quem estava do outro lado da linha. 

Pois é: -" o meu dente sangrou a noite inteira, e manchou o travesseiro,  e doeu muito, e  a minha cara está inchada, e o olho ficou roxo, e a senhora  avise a Sandra, que a Sandra é muito boazinha pra mim, mas hoje não dá e hoje não vou."

Conhecendo a filha que tenho, tentei argumentar:
 -" Olha, Marlene, venha só arrumar a casa, em seguida  você vai  embora."

Mas ela não podia: durante a noite, - ela gritara de dor-  durante toda a noite! Até o marido estava a impedí-la de vir, penalizado com tanto sofrimento.  
 
Então, eu disse claramente, sem nenhum rodeio: "Marlene,  a Sandra é dentista, ela sabe se o seu "dente" doeu ou não. Não adianta você querer enrolar a Sandra com essa história de dente, que foi tirado há uma semana."
" Vamos fazer assim - eu propus- você vem até aqui, enrola o serviço, dá uma disfarçada geral, eu dou um jeito de levar o povo para  almoçar fora, e lá pelas 11 horas você vai embora sem criar problemas nem para você, e nem para ela."
 
Não adiantou. Ela disse que não, que não podia vir. Que o olho, que o inchaço, que o dente, que o sangue, que a dor.
 
Desliguei e pensei: isso vai dar algo muito próximo da desinteria. Daquelas bacterianas, com muito fedor.

Quando já estava com a metade da louça lavada, Sandra desceu para o café e contei o que tinha que contar: 
-"Marlene  não viria".
 E escutei o que já sabia: 
-"Marlene  não a  enrolaria". 

-"Imagine mãe,- ela disse-  isso é um absurdo, ela não pode mentir desse jeito. Eu sou dentista, mãe, eu sei!" 

 Eu também sabia.

 Quando olhamos para a porta, durinha, em pé, lá estava Marlene: sem edemas, sem sangramento, sem roxo, sem sinais de cansaço, sem outra coisa a não ser uma cara bem murchinha: 
-" Eu pensei bem e vim, pra não deixar você na mão, Sandra. Mesmo com dor,  eu vim. Você é tão boazinha para mim". - Ou seja, ela viera nos fazer um favor: a mártir do dia.  

E aí começou a guerra do Paraguai. Sandra é uma pessoa que não aceita mentiras. Que não suporta artifícios. Que não usa de subterfúgios.  Que tem horror a falsidades. Que não condescende com o erro, mesmo que isso lhe custe a empregada. 

Imediatamente,   foi com ela para o escritório: lugar de castigo! O objetivo de Sandra era que Marlene confessasse a mentira, e então ela perdoaria. Que Sandra sabe perdoar. Mas isso, Marlene  não faria. Ela repetia a mesma história e Sandra repetia que essa história não existia. 

Um breve momento de trégua. Silêncio no norte. No sul, eu lavava a louça.
 
Então de novo, Sandra: - "Sabe, Marlene, todos  nós  somos pecadores e eu mesmo sou pó e cinza. Quem sou eu para não te perdoar? Fique tranquila: no momento em que você admitir que mentiu, eu perdôo e esqueço. Mas não posso permanecer com você aqui em casa, mentindo para mim. Você é a pessoa que cuida dos meus filhos! Eu preciso ter total confiança em você!"

 Sandra é uma pastora! Mas Marlene não queria ser ovelha, não admitia o pecado e não queria ser perdoada de coisa alguma que - "esse pecado ela não cometera!"- dizia aos prantos.

Nessa altura, a louça já estava lavada e a vassoura me esperava. Do lado de fora, eu ouvia- que remédio? -  e não havia avanço nessa marcha: nenhuma das duas arredava pé da  posição. Impasse total.

-"Pois se você está doente, vá embora e só volte quando ficar curada, porque na minha casa ninguém trabalha doente." - Foi o golpe de misericórdia.

E aí  miraculosamente, ela  ficou curada. Naquele minuto mesmo, já não sentia mais nada. Mas quando Sandra perguntava se ela admitia a mentira, ela dizia que não, que ficara curada ali, naquela hora.

Poderia parar por aí, não? Eu teria parado. Aliás, eu nem teria começado. Na hora em que Marlene apontou a cara na cozinha, para mim já estaria de bom tamanho, e eu lhe devolveria com o maior prazer o posto que, por direito, lhe pertencia.
 
Mas Sandra, não!  Sandra disse que ela só ficaria trabalhando em sua casa, se falasse a verdade. Ela afirmava que aquela era a verdade. Então, Sandra repetia que ela podia ir embora. E ela tornava a repetir que estava boa e que não iria embora.

 Resolvi ciscar a terra e entrei na sala.
 - "Ela já sarou"-  eu dizia. 
 - "Fica quieta, mãe, que na minha casa eu não abrigo cobra." 

E aí a coisa ficou feia para o meu lado.
 -" Você mãe - você!!! - para não ter que fazer o serviço de casa, engole tudo, mas eu não aceito. Na minha casa, cobra não trabalha."
 
Na linguagem evangélica, "cobra" está relacionado com a primeira mentira, lá no Jardim do Éden." Ser "cobra" é um estilo de viver muito perigoso, para os demais habitantes do jardim. Porque a qualquer hora a cobra pode picar.
 
Minha filha,  quando é tomada de um ardor pela verdade, se inflama e me queima. Pôxa, nem precisava. Minha intenção era poupar uma, de ficar sem ajudante, e  a outra, de ficar desempregada. Mas o amparo do amor fôra rechaçado. Pois que se lascassem as duas, pensei.

 Resolvi posar de espectadora. De espectadores ficamos todos nós: Ivo, eu, Wanderley e as crianças, cada um  cuidando da sua vida. O pai e o avô foram com as crianças para o campo de futebol,  e eu me sentei na sala. Esperando.

O resultado? O resultado foi um julgamento mais rigoroso do que aquele que existiu no Éden. Tive que voltar à cena do crime.  E foi invocando Pilatos que consegui acalmar a pantera ferida.  Disse que nem Pilatos seria tão rígido quanto ela estava sendo. Que a outra já aprendera  a lição: nunca mais mentiria. E que agora, era necessário exercitar o amor e aguardar o resultado. Que não seria imediato, mas viria. 

Por fim, viria: porque o bem triunfa sobre o mal, e o amor sempre vence.

E ficamos assim, como no princípio: nem Marlene confessou a mentira, nem Sandra abriu mão da sua preciosa verdade. Que sacrificar a verdade seria condescender com a mentira. Mas confessar a mentira seria uma verdade grande demais. E doeria.
 
E mesmo ficando - assim como no princípio- , de alguma maneira misteriosa, todos nós sentimos que, graças aos rigores da inquisição, graças à sentença prolatada - mesmo que não executada-   a justiça de Deus se cumprira. 

 Senti- vou confessar o que senti,- senti  admiração pela postura firme da minha primogênita,  sabendo que nela, o amor se derramaria, em seguida, como sempre tem-se derramado, durante toda a  vida. Ela ama com a mesma intensidade com que defende a verdade. Ela se gasta pela regeneração de uma única pessoa, como se estivesse regenerando o mundo.

 O que houve depois só a alegria de uma cigarra poderia explicar. A docilidade invadiu a todos. O ar puro  permitiu que aspirássemos em largos haustos a primavera. Que nem era:  era inverno. Mas que luta estranha se travara no ar para conseguir de volta a normalidade, que nos fora, repentinamente, tomada! 

E, repentinamente, devolvida. Pelo avançado da hora, Marlene ficou limpando a casa e a família foi almoçar fora. 

Antes de sair, já distingui Sandra no exercício do amor:
 -"No freezer tem aquela lasagna que você gosta. Pode descongelar." 
E Marlene responder: 
-" Brigada Sandra,vou deixar a casa bem limpinha."

A bruxa. Aonde estaria a bruxa?  Se alguém houvesse  perguntado, eu não me incomodaria de  levantar a mão: sou eu!

Eu sou a bruxa que relincha  de prazer, quando devolve  a vassoura e  vai ao Shoping D. Pedro.