A ABELHA E O MEL
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 


Olhar para trás e rever uma certa constância nos atos da vida. Isso tem sido algo tão raro! 

Sei que muitos dirão que não, que são os mesmos nas escolhas morais, e com isso  até concordo. A tendência do pau que nasceu reto é permanecer reto, e a tendência do pau que nasceu torto é morrer reto (também) porque creio no poder transformador de Jesus, embora, por vezes, nem Jesus consiga mudar o torto que quer permanecer torto.

Mas não é desse tipo de escolhas que estou falando.  Também não me refiro às inevitáveis mudanças que vamos absorvendo lentamente, como parte do processo de amadurecimento psicológico. 

Quando criança, e quando jovem, eu era dura como o talo quebrado de uma rosa cheia de espínhos. Meu pai perdia a cabeça comigo e me batia, com a sua mão pesada, bem no meio da cara. Ficava o carimbo por longas horas. Um carimbo que eu exibia com orgulho, de tão ruim que era. Ia para o armazém e quando um de seus fregueses me perguntava o que era aquilo, eu apontava o dedo para ele. 

 Essa era eu: uma peste metida a gente. Minha mãe dizia: "Antonio, pai não bate em filho, na cara! Tanto lugar para você bater - bata nas pernas, na bunda, em qualquer outro lugar, mas não na cara." E ele arrependido, balançava a cabeça e dizia inconformado consigo mesmo: "mas é que essa menina me responde de um jeito  e me olha de um jeito, que eu perco a cabeça!"
 
É verdade, pai. Eu merecia apanhar na cara, nas pernas, e na bunda, por não lhe render a devida honra e o mais profundo respeito, que- como pai-  você merecia de mim. 

Eu era uma flor inteira de duro talo quebrado, e hoje sou uma flor quebrada de flexível talo inteiro. Mudanças às quais não me refiro aqui.

Também não estou me referindo às mudanças espirituais, que se incorporam às mudanças psicológicas, de forma que, muitas vezes, não sabemos distinguir se fomos nós quem mudamos, ou se foi Cristo quem nos mudou, com o seu novo habitat dentro de nós. 

  A tendência do ser humano normal é envelhecer com mais ternura, pelo acumular de sua própria sabedoria, aquela que os anos lhe trouxeram, e pelo quebrantamento do espírito que Deus providencia, a cada dia,  na vida dos seus amados. 

Essas mudanças todas são benéficas e altamente desejáveis. O vinho velho é melhor. Precisa ser melhor. Se não fôr, é porque azedou de vez. 

Do que estou falando então?  Quando digo:"Olhar para trás e rever uma certa constância nos atos da vida. Isso tem sido algo tão raro!" 

Estou falando da precisão de um caracol que se enrola e permanece enrolado, e permanecer enrolado, é o seu jeito sem compromisso de existir. Estou falando de gratuidade.

  Começar uma aula de pintura, e conservar-se pela vida afora aprimorando a técnica.  Caminhar todos os dias como fazia Kant, sempre no mesmo horário, ou no mesmo lugar. Jogar futebol quartas feiras à noite, e sábados  à  tarde. Perseverar em um  trabalho voluntário,  com a mesma fidelidade com que se bate o ponto no local onde se ganha o pão de cada dia. Jantar com as mesmas amigas ou amigos, uma vez ao mês.  Frequentar a academia de ginástica com a determinação inicial.  Poder dizer: Faço hidroginástica há 10 anos; faço aulas de dança há 5 anos; faço terapia corporal há 4  anos. Fazer pão integral e comer pão integral, a ponto de não precisar lembrar-se  da receita, e jamais esquecer o  seu sabor. 

Ser regido ou regida pela determinação de jamais abandonar no caminho o corpo antigo.  Estar aqui e não lá. Quem está aqui, que permaneça aqui, e quem está lá, que permaneça lá.

 Isso é raro! Há uma escassez de propósitos. E essa escassez de propósitos tem sido vista também na igreja do Senhor. As pessoas começam o desvendar de Deus de maneira tão apaixonada, e logo em seguida  tornam-se meramente  religiosas. Frequentam o templo  semanalmente por obrigação, e não por convicção. Quando não, debandam de vez, somem, desaparecem, como por encanto. 

Hoje não dá para contar com pessoas que não tenham sido remuneradas para o evento chamado Vida.  O dinheiro ainda produz uma certa fidelidade. Mas de resto, sempre fica a interrogação: Até quando você estará aqui? Até quando a chama da paixão pela causa manter-se-á  acesa?  

Saber quando o gás está acabando é tarefa relativamente fácil: É só observar a chama. Chama que muda de cor, que bruxuleia,  que varia de intensidade, é sinal de alerta: pode faltar fogo no meio do cozimento.

A volaticidade dos propósitos humanos, a mim, parece revelar uma doença íntima: o homem está à procura de alguma coisa que ainda não encontrou. E que não encontrará nesta dimensão de maneira plena: Deus se desvenda, mas não se descobre em plenitude. "Hoje vemos como por um espelho, amanhã o veremos face a face".
 
Quando essas palavras foram escritas, a arte de fazer espelhos não tinha sido aprimorada, a ponto de se obter a nitidez de agora. Ver como por um espelho, naquele tempo, era ver como por um espelho:  apenas vagamente. 

O espelho mudou, mas a Palavra de Deus continua  a mesma. Ainda o vemos vagamente, ainda apenas o pressentimos, pelo seu agir, pelas circunstâncias misteriosas que determinam os improváveis da vida, e que nos fazem desconfiar que: é ELE!!!

São os bons presságios. Aliando os bons presságios, à certeza da fé, cria-se a busca. Se a busca for intensa, então cumprir-se-á o que está escrito: "Buscar-me-eis e me encontrareis quando me buscardes de todo o vosso coração."

E aí? E aí a busca não termina, mas fica atenuada:  nada mais poderá substituir a sua vocação para a eternidade. Aquele que viu a abelha, sempre virá atrás do mel.