Beco da consciência

Noite de festa na cidade, duas grandes bandas que tocam forró vulgar vão apresentar-se próximas a praça pública, eu não sou lá grande fã de forró, prefiro MPB, mas gosto sim de escutar o velho e bom forró pé de serra e arriscar-me perigosamente em alguns passos desordenados.

Acordei por volta das sete horas da noite, a festa provavelmente deve começar próximo das dez, me levantei coloquei minhas roupas e sai pra comprar minhas cervejas num botequim perto de casa, ao chegar lá, minha ilusão foi quebrada ao saber que eles não tinham nem Bohemia ou Nova Schin, então decidi que iria sair pra beber alguma coisa no bar perto da festa, provavelmente deveria encontrar alguém conhecido.

Na volta pra casa ao passar por um beco, onde anos atrás o pai de um grande amigo foi morto, presenciei uma cena desagradável, vinha um senhor na casa de seus sessenta e oito anos e um menino pequeno que provavelmente teria seus quatro ou cinco anos de idade, o garoto vinha com um saco de pipocas na mão, o “guri” vacilou em um dos seus passos e acabou caindo junto com a pipoca, o seu provável avó pegou-o pelo braço pequeno e frágil apenas para que o menino não caísse de cara no chão, assim que o menino pôde apoiar seu outro braço no chão, o senhor baixou-se e começou a colocar as pipocas que estavam no chão úmido e sujo de volta ao saco.

Provavelmente eram pobres, talvez aquele ato de comprar uma pipoca na cidade não fosse feito com tanta freqüência, com certeza não, creio que aquele ato se desse apenas em noites de festa, e parecia ser um ato raro, talvez aquele pequeno menino estivesse completando mais uma primavera, não sei.

Será?

Será que aquele saco de pipocas era o presente de aniversário daquele “guri”, será que naquele dia estava ele completando mais um ano de vida?

Não sei, simplesmente não sei.

Não contive-me em ser espectador desta cena.

Tinha eu apenas uma nota de vinte reais no bolso, e para que diabos eu iria querer aqueles malditos vinte reais, se na minha frente um velho resmungava com uma criança por algumas pipocas no chão.

Continuei andando em frente, caminhando de encontro aqueles dois seres que por suas presenças me faziam sentir pequeno, miúdo, ridículo, idiota, fracassado... Geralmente é assim que me sinto ao saber que não sou eu um grande sociólogo como o saudoso Hebert de Souza o “Betinho”, sei que contribuo para a melhoria do quadro social, mas mesmo assim perante a realidade infernal de algumas pessoas acho minha contribuição quase que inútil.

Ao passar por eles deixei cair, minha nota de vinte reais, e então apanhei, enquanto o senhor se levantava.

Sorri amigavelmente e disse: “Boa noite”, meu ato foi retribuído com a mesma simpatia e com as mesmas palavras amigáveis.

Então falei que vi que a nota de vinte que estava com ele tinha caído, o senhor disse que não, que não era dele o respectivo dinheiro. Peguei a nota e coloquei no bolso da camisa surrada dele, e disse que era dele ou então algum fantasma o tinha jogado ali.

A criança me olhava com os olhos brilhando de uma luz divina que somente as crianças possuem, o senhor que no alto de sua idade e sabedoria popular entendeu o que se passou me olhou amigavelmente como a quem devesse um grande favor a pagar.

Passei a mão pela cabeça de cabelos negros daquele franzino menino e sorri amigavelmente lhe perguntando quantos anos possuía, o menino por sua vez estendeu a palma da mão com os quatro dedos estendidos, sorrindo alegremente.

E então seu avó revelou um mistério que habitava em mim, confirmou minhas perspectivas dizendo que era aniversário do “guri”.

Olhamos-nos pela ultima vez, escutei o obrigado do velhote.

Cruzei o beco com a consciência mais leve e tranqüila voltando para o conforto quente da minha casa, onde existe moveis, camas, redes, e aparelhos domésticos que transformam nossa vida mais fácil.

Fiquei apenas com o querer que aquele “guri” se torne mais um homem de bem neste mundo repleto de delinqüentes.

Eles por sua vez seguiram seus rumos incertos e difíceis, amargando as dificuldades de uma classe social desprivilegiada e sobrevivendo bravamente a procura de novos dias com “um lugar ao sol”.

Modesto C. Batista Neto - www.orelator.blogspot.com