UMA LINDA MULHER.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.


Viver é protagonizar vários papéis. Escrever é como revelar o papel do dia. Sempre o mesmo personagem, com a sua velha vida, acostumada aos vários papéis. 

Eu não me estranho nunca. Já vivi todos eles, por milhares de dias, ao longo dos anos,  tudo misturado com nostalgia, honestidade e essa disposição interior de nunca disfarçar. Sou uma big brother virtual  e o meu jeito de escrever diz assim para você: vem que é bom! 

Aqui não há câmeras escondidas, há compartimentos escancarados. Essa coragem me vem de uma vida bem vivida, e da presença de Deus em mim. Deus em mim é um Deus coragem.
 
Então vamos lá. O tema de hoje é : Uma linda mulher! 

Em minha cidade há algumas jovens senhoras que ainda me observam muitíssimo: resquícios da pré adolescência que elas viveram, enquanto eu já vivia a  pré maturidade. 

Elas eram meninas, e eu já era uma linda mulher. Pois algumas dessas meninas, contemporâneas de minha filha mais velha, continuam me chamando carinhosamente  de " nossa musa inspiradora". Olha a responsabilidade!  

Por causa delas, continuo muito íntima do mundo da moda. Sei quando voltou a  usar xadrez, sei quando  camisa branca é peça fundamental no vestuário, e sei quando um colete precisa ser providenciado, com urgência, para compor o novo look. 

Juro que sei disso, só por causa delas. Tento não decepcionar, pois afinal, estou inspirando um estilo. Não quero que as minhas discípulas me vejam por aí, toda hum mil novecentos e bolinha. 

Se bem que, às vezes...!!! Vou ao mercado com o chinelo havaiana mais velho no pé e nada combina com nada: é o dia em que - comigo mesma- estou completamente des-combinada. Nesse dia, torço para que elas não me encontrem, e se acaso as encontro,  corto voltas, e caminho léguas, para que o sonho não se perca e o modelo não se desmanche no ar.

Semana passada, houve festa em nossa cidade. E o Ivo estava trabalhando como garçon. Na barraca do Rotary, claro. É uma festa bonita que se chama Festa das Nações. Devem existir muitas iguais a essa,  por esse Brasil afora. Uma barraca  faz comida da nação mineira, outra barraca faz comida da nação paulista e outra barraca faz comida da nação caseira, e vai por aí. E eu fui jantar na barraca da nação rotariana. 

E lógico, caprichei no visual, porque não podia correr o risco de decepcionar as minhas meninas. No futuro, se o marido as visse, sem nenhum glamour, gordas, desleixadas,  e completamente fora de moda, não seria por culpa do modelo que elas adotaram desde a infância. 

 Então escolhi um look básico,  mas atualizado: calça jeans, camisa branca e colete verde-jeans. Coisinha simples, mas da hora.  E arrrematei com uma sandália salto 11 da Luz da Lua, que ainda nem acabei de pagar. A plataforma na frente, compensa a altura do salto e, por isso, das alturas se pode usufruir de algum conforto.

Uma maquiagem leve, uma cara não tão nua, e lá fui eu de novo: de volta para o passado!

Eu sabia que não podia vacilar! Logo de cara, encontro Eliane Vendramel que vem me abraçar.  E me elogia para mim mesma. E me elogia para o Ivo. E me elogia para o povo que está em volta de mim. E eu respiro fundo, e me aprumo melhor no salto, e penso: Valeu a pena! 

Ivo sorri bondosamente e diz sempre assim: " É porque eu cuido bem dela." Com certeza, Ivo, é porque você cuida bem de mim, e  me trata com amor, e renova os meus hormônios, e paga meus tratamentos e me dá um bom pasto, senão já estaria existindo matronamente pela vida, com essa vocação que tenho para ser mãe de um mundo estrupiado.
 
Então jantamos. E logo depois, eu me levantei para vir embora porque o som estava muito alto, e porque o meu ouvido é sensível, e porque eu não aguento. E também porque já estava jantada e devidamente abençoada. 

Mais uma vez, em agosto. 

Então, Ivo gentilmente, passou o braço em volta dos meus ombros e disse em delicadeza de oferenda: - vou te acompanhar até o carro. E até o carro fomos. Dentro de mim começava a formar-se a cintilância de um cristal inteiro e eu até ensaiava jogar para trás a cabeleira, que não tenho mais, num gesto involuntário de vaidade secular.

Se o carro estivesse perto, a noite teria sido perfeita. Mas o carro estava longe, um tumulto de gentes e foi preciso desfazer a mão do ombro e assim fomos, nos desviando da multidão como podíamos.
 
E eu descuidei. Pensei que já podia descer do salto, sem descer.  Devo ter-me des-equilibrado e des-equilibrada fiquei: a vaidade se perdera, mas não a candura.  Na escuridão da noite, só Ivo e eu: um lugar perfeito para um beijo apaixonado!

Ivo que viu a uva, não viu o beijo. Só viu  o des- equilíbrio  de mim mesma sobre o salto 11.  E foi cruel comigo: estilhaçou o meu cristal, sem dó nem piedade. 

Ele disse assim: 
- Você está com algum problema no quadril? 
- Eu??? Não!!! Por que?
- Porque está mancando da perna direita.
- Eu não!!!
- Está sim! 
- Claro que não!!! É a calçada irregular, olha lá que calçada esburacada. - E olhei para trás para mostrar a cárie de um dente.
- Hummm... não vi buraco nenhum.

Nem eu. O que vi foi assim: uma crueldadezinha, um risquinho de fel, que lhe escorreu- quase imperceptivelmente-  pelo canto daquela linda boca. Ivo tem uma boca linda e  uma voz grossa e aveludada e quando fala: Fala!
 
Suas palavras para mim tem o peso de uma sentença prolatada e prestes a ser cumprida. sem apelação.  Porque eu o amo e nesse amar, fico meio confusa. E nessa confusão, confio no discernimento dele. Se ele disse que eu estava mancando da perna direita, por certo, eu estava mancando da perna direita.

Tchau, bobão - eu falei!
Tchau, bobona - ele respondeu.
- Juízo, hen? - eu disse para que ele tivesse a ilusão da juventude, aquela mesma que ele me negara.

Mas ele já estava longe.