SALVEM A QUEDA D'ÁGUA!

Há uma chácara na memória da nossa infância, onde parece que crescemos. Na verdade, não crescemos nessa chácara, vivemos em torno de dois anos lá, mas foi tão bom ter vivido nesse lugar que sua lembrança ocupa muito espaço na memória de nossa infância, deixando a impressão de que lá crescemos. Nossos tios menores devem ter morado três ou quatro anos nela.

Por minha própria vontade, e sei que pela vontade do meu irmão e irmã, bem como de meus três tios menores, jamais teríamos deixado de viver naquela chácara. Nós é que sempre que nos reunimos ficamos a relembrar as coisas da chácara, quão bom era ser criança vivendo nela, ter aquele vasto arvoredo, um manancial de laranjas, bergamotas, goiabas, butiás, araçás, ameixas, pêras, limas, hortênsias, etc., além do canavial e a cascata como playground, bem como os campos e famílias vizinhas. Quando não tínhamos que ir à escola, passávamos o dia sobre as árvores frutíferas, às vezes, goiabeiras, outras vezes, larangeiras ou bergamoteiras, alcançando as frutas com a mão e saboreando as delícias do inverno ou verão.

Mesmo as assombrações da casa e as histórias de defuntos velados em sua sala são parte das boas lembranças. A casa escura, com mais de duzentos anos, seus grossos paredões de tijolos maciços assentados em sentido transversal, seus quartos enormes de portas altas, suas janelas imensas de duas folhas, seu pé direito sem fim, seu assoalho de madeira, suas paredes imponentes, tudo isto compõem o quadro das mais belas lembranças de nossa infância. Nossos pais e tios, os que eram adultos naquele tempo, quase nem falam da chácara, sinal que para eles ela não passou de uma casa de aluguel. Meu pai, entretanto, há poucos anos comentou comigo sobre a chácara, aludindo à sua beleza e grandeza, acrescentando quão tolos foram, ele e o nosso avô, seu pai, por não tê-la comprado por uma bagatela parcelada em longos anos, como disse que lhes fora ofertada.

Todavia, a impressão que temos é que tudo isto, toda a saudade daquele recanto paira somente em nossa lembrança, na lembrança das crianças de então, hoje com mais de quarenta anos. Sinto que continuamos sendo crianças, pois não deixamos de gostar das coisas que as crianças gostavam. Desejava ter dinheiro para indenizar as famílias que formaram aquela vila nas terras da chácara, recuperando-a de divisa a divisa, restituindo-lhe a forma original, replantando o arvoredo, reconstruindo a grande casa como num desenho que esbocei de minha memória. Reabriria o poço de treze metros e água fresca, despoluiria a cascata, fazendo que retornasse ao tempo em que podíamos beber e nos banhar em suas águas cristalinas.

Em 1974, uma retro-escavadeira solitária começou a sangrar a colina defronte à colina da chácara, recortando as ruas e formando as quadras do que viria a ser a parte alta da Vila Born. Ao ronco do motor da máquina, de vez em quando parávamos de brincar, indo para um ponto alto da chácara para ver o trabalho e imaginar quando ali houvesse casas formando uma cidade. Seria um sonho quando a cidade viesse até nosso longínquo recanto rural, quando também viesse a luz elétrica.

Não percebíamos quão ameaçadores eram esses acontecimentos, sendo que nossas coisas boas estavam sendo devastadas e éramos simpáticos a isso. Um capão no alto do morro desapareceria em parte. Nesse capão, onde moravam os temores de minhas fantasias infantis, o lobisomem, talvez, perto de onde era o fim do mundo, cuja beirada estava um pouco mais além, onde não se podia mais ver o chão, mas só o céu, como eu pensava até poucos anos antes –, nesse capão íamos, eu e meu tio Anecildo, que então tinha dezesseis anos, buscar lenha para o fogão da avó Isabel. Ainda naquele ano de 1974 os soldados de um dos quartéis de São Leopoldo tinham feito exercício de guerra naquele morro. O acampamento fora assentado no capão. Durante o tempo em que o ocuparam não estivemos lá. Apenas observávamos os movimentos militares à distância de nossa colina e, escondidos, víamos os milicos tomarem banho sob a queda d’água de nossa cascata. Depois que se foram, fomos lá, eu e o meu tio, ver o que teriam deixado de interessante. Nada mais do que pequenas fogueiras e fezes em um canto ou outro. Nada como o que a viria depois da passagem daquela retro-escavadeira.

Não sabíamos das ameaças da chegada de outras pessoas, muitas sem qualquer sonho, romantismo e amor pela natureza. Na verdade, na vila ao lado, que ocupa a colina à esquerda da chácara para quem olha para o sul, na vila então conhecida por Caída do Céu, já se compunha a ameaça à pureza da cascata. Muitas pessoas já ocupavam a área verde às margens das profundas valas das nascentes do arroio da cascata. Não sabíamos também que parte de nossa família viria a contribuir com a deterioração de nossa sagra cascata.

Ainda no ano de 1974, começamos a ouvir os rumores de que nos mudaríamos da chácara. Parecia uma boa coisa, por causa da expectativa em conhecer um lugar novo e novas pessoas, fazendo novos amigos. Entretanto, sentíamos ter que deixar nossa chácara e, às vezes, nos lembrávamos que sentiríamos saudade.

Meses depois, os rumores foram tomando forma. Num dia de domingo, então com quase nove anos, cruzei com nosso avô Fridolino os ananás após o olho-de-boi da parte mais baixa da propriedade, cruzando, já fora da chácara, um dos braços da nascente da cascata, que é o arroio Krause, indo depositar as ferramentas num canto cortado por este e o braço da nascente principal do mesmo arroio. Ali o avô já tinha erigido o esqueleto de uma casa, cujas paredes ele fecharia com pedaços de madeira velha e cobriria de zinco, onde ele viveria com a avó Isabel, as meninas e os tios solteirões até quando morresse, em 1994. Por esse mesmo tempo, noutro dia meu pai me mostrou mil cruzeiros, pelo que achei que estávamos ricos, mas ele me informou que não era muito dinheiro e serviria apenas para comprar as tábuas da casa que ele estava construindo em um terreno da prefeitura na localidade então conhecida por Chácara da Prefeitura, no bairro Vicentina, a oeste do Centro da cidade. No inverno de 1975 fomos morar nessa casa, enfrentando uma enchente cujas águas chegaram a vinte centímetros abaixo do nosso assoalho, apesar de que o pai tinha construído a casa sobre pilares de dois metros de altura.

Nos anos seguintes, quando visitávamos nossos avós e tios no recanto onde foram morar, na parte mais baixa da vila Caída do Céu, observávamos que as margens da nascente da cascata foram se enchendo de casebres, que, com o passar dos anos, foram se transformando em casas melhores, mas nunca deixando de lançar dejetos no arroio da cascata. Muitas crianças que lá nasceram, tornaram-se adultos e têm hoje seus filhos, mas nunca conheceram o córrego da cascata como quando ele abrigava pequenos papagaios e outros animais silvestres tranqüilos e felizes. Jamais aprenderam a amar aquela dádiva, tampouco a querer preservá-la.

Ao longo de poucos anos a chácara foi sendo transformada numa vila de casebres, a velha casa foi demolida, as árvores deram lugar às casas e a orla ao longo do curso do arroio foi sendo crivada de casas mal construídas, recebendo seus dejetos sistematicamente, além de móveis velhos, plásticos, pneus e tudo o mais. Assim esses moradores insensíveis livravam-se de seus badulaques indesejáveis, jogando nas sombras do profundo vau da cascata, crime tornado anônimo pela densa mata nativa, que insiste em resistir a tais insolências. Assim, essas pessoas de outro mundo foram transformando nossa sagrada cascata num esgoto fedorento.

Em 2001, tendo encontrado em meio à área urbana que agora está ali um caminho para chegar à cascata sem passar pelos terrenos alheios, desci como nos velhos tempo os trilhos úmidos em meio às árvores tortuosas até o vau sombrio e frio da cascata. No lugar, onde outrora cruzávamos o córrego pendurados em cipós, encontrei algumas características que lembraram o tempo de criança, todavia, o sentimento de solidão causado pelo silêncio quase absoluto, quebrado somente pelo ruído do correr da água, foi desmentido pelo odor de fezes e sabão que emanava da espuma da queda d’água, que antigamente fazíamos de chuveiro nas tardes quentes do verão.

O aroma de mato não mais existe, as fendas nas lages ao longo do córrego são como antes, mas incrementados de uma água escura e fedida, de garrafas e sacos plásticos, papel higiênico e sofás velhos. Andei ao longo do vau por dentro do mato, como fazíamos antigamente, quando nos assustávamos com os ruídos da água e sons de animais ao fundo do silêncio mortal. Muitas coisas terríveis vi ao longo do caminho, menos o som de pássaros. O ruído tenebroso da água nalgum fosso ou curva córrego, o ruído de galhos se chocando e quebrando-se para depois cair, muita coisa era como antigamente, muitas outras, porém, não causavam sentimento de temor ou acolhida, mas tristeza. Nos fundos de uma casa mais abaixo, vi de dentro do mato uma emanação de lixo derramando-se em casca no vau do arroio. Fiquei, sinceramente muito triste. Verdadeiramente, as pessoas são cruéis.

Não que façam mal à natureza, mas a si mesmas. Claro que fazem mal à natureza, mas desta eles não estão na pele. Entretanto, estão em sua própria pele e esta está em meio à natureza que eles degradam.

Como podem não se incomodar em viver em meio ao lixo? Imaginam que sempre conseguirão a água e alimentos puros no mercado, embora poluam as fontes sem o menor drama de consciência. Limpam a casa por dento, mas não se importam de tê-la num mundo imundo, que eles mesmos poluem com a sujeira que tiram de dentro dela.

Wilson do Amaral