EXTREMA DECISÃO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

 "Eu só sei que existe um Criador" - ele me disse, com voz muito fraquinha,  olhando contrito para a frente.

- "É pouco" - eu respondi, dando a volta no leito,  para olhar diretamente em seus olhos. - "Para nascer, você precisou de um Criador, mas para morrer você precisa de um Salvador. Se não tiver, lascou-se." 

A minha impiedade foi tamanha que me assombrei com a coragem súbita. O moribundo fitou-me sem mágoa e mordeu a isca: - "como se faz para ter um Salvador?" - perguntou-me.

Li para ele Romanos 10:8-10 -  "A palavra está junto de ti, está na tua boca e no teu coração, isto é, a palavra da fé que pregamos. Se com a tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Pois com o coração se crê para a justiça e com a boca se faz confissão para a salvação."

Ele gostou da idéia e confessou sem rodeios. O fio de voz até engrossou. Como um rio caudaloso se joga na cachoeira, ele se jogou, antes do mergulho que lhe era inevitável.

Tão fácil e tão necessitado estava. O meu trabalho acabara.

Os familiares não gostaram:  pois se estiveram o tempo todo evitando a mais leve menção à indesejada de todas as gentes, de repente vinha uma estranha, com a Bíblia na mão, e declarava para o doente o que o consenso geral determinara esconder. 

O doente já sabia, todo mundo já sabia. Já nascemos sabendo. 

Uma semana depois, o que todo mundo já sabia, aconteceu: o doente morreu. 

Mas os anseios de liberdade também se manifestam na morte.  

Libertados dos cuidados, da  realidade ameaçadora,  todo mundo foi: cada um para o seu fazer sempre renovado, nesse consenso libertário de que a morte não existe. A morte é apenas uma dura sombra que  persegue, mas jamais alcança. 

Na memória, guardei o rosto magro, as mãos ossudas e algo que não sei descrever na meia escuridão daquele olhar assustado.  Mas na eternidade, espero que não nos reconheçamos nessa carne que nos nivela por baixo. Que  tudo seja novo. E que ainda assim possamos  nos abraçar e dizer, sem sombra de equívoco: que bom que você chegou aqui!
 
Aqui  somos tão iguais. Lá seremos de um igual diferente.