Ciúme e asfalto

Fabrícia era uma adolescente ciumenta. Quando ia pra casa do namorado já chegava à porta feito um detetive, olhando pra todos os cantos, esticando os ouvidos, farejando compulsivamente tudo o que poderia exalar cheiro, era algo impressionante, elétrico. Se fora traída em alguma circunstância era muito provável que houvesse vestígios, sinais a interpretar, o que lhe exigia observação cuidadosa em cada mínimo detalhe.

Gustavo, coitado, já abria a porta assustado, temendo ser severamente punido pelos pecados não cometidos nem planejados. Pela forma como lhe abria sempre a porta, pálido e com os olhos arregalados, alimentava ainda mais a desconfiança em Fabrícia, embora seu medo fosse, na verdade, dela puramente. Se tivesse um surto de ciúmes, apanharia ou ficaria de castigo por um longo tempo...

Fabrícia e Gustavo não tinham vida social. Qualquer tipo de relação extra-casal seria intensivamente vigiada e controlada. Não haveria alma nesse mundo que não despertasse ciúmes na menina. Na sala, o controle remoto sempre estava em suas mãos pra mudar de canal diante de qualquer cena ou comercial incitante. Se somassem a censura de todas as ditaduras que o mundo já viveu não se compararia à imposta pela garota. Ela violava impunemente o Estado de Direito Democrático. Nem no Irã haveria tamanha restrição à liberdade... Mas Gustavo, de alguma forma, já estava acostumado a isso. Embora parecesse uma marionete nas mãos da namorada, sentia-se orgulhoso diante do medo que ela demonstrava de perdê-lo. O sentimento de importância, em certo grau, contrabalançava os constrangimentos e momentos em que era exposto ao ridículo. Afinal, aquilo era uma prova de amor, consolava-se Gustavo.

Quando saíam à rua, Fabrícia sempre tropeçava em pedras e calçadas porque definitivamente não olhava pra frente. Mirava apenas nos olhos de Gustavo, rastreando-lhe os movimentos, medindo o ângulo, sentido e direção de cada olhar. Qualquer expressão nova rendia-lhe automaticamente uma série de indagações. Por que está sorrindo? Porque está com essa ou com aquela cara. Por que arrumou o cabelo? Por que virou pra trás? Porque está cantando esta música? Você está pensando em que? Porque está olhando pra mim assim? Era um inferno. Preso à vigilância incessante da namorada, Gustavo sentia dificuldades até de respirar. Era algo sufocante. Começava a sentir-se profundamente incomodado com essa situação. Nada podia. Tudo estava sujeito a análise e questionamentos. Não podia mais movimentar-se, comunicar-se, enxergar, ouvir, chorar, sorrir, pensar, ufa! Respirar ainda podia, até o momento em que não estivesse inalando o cheiro de um perfume vagabundo de uma vagabunda que por eles passasse. Controle total. Gustavo estava absolutamente encurralado no sistema de segurança que a namorada havia desenvolvido. Aliás, ela era o próprio sistema em si, cuja eficiência jamais fora alcançada por tecnologia alguma no mundo.

Acompanhava o rapaz em todos os atos públicos e mesmo privados. Revirava o banheiro em busca de revistas masculinas. O quarto, nem se fala. Proibiu-o terminantemente de conectar-se à internet, o que significava para o rapaz, penso eu, um retrocesso tecnológico e, porque não, cultural. Falar em orkut seria o mesmo que falar a palavra democracia na China, correria sérios riscos. Quase não pegava mais em livros, revistas, quase não assistia mais TV, quase não saía, quase não tudo. Passara a viver de quase e de nuncas. Quase e nunca. Era frustrante. Tão jovem, com um futuro tão brilhante pela frente ofuscado. Adoeceu. Foi parar no psicólogo que o encaminhou ao psiquiatra. Depressão. Gustavo agora quase não comia e o pior, quase não namorava. Mas o problema se deu quando Fabrícia verificou que o psiquiatra era na verdade a psiquiatra. Nesse dia quando os dois voltavam juntos pra casa, a moça surtou. Desorientada diante de tamanha ameaça à sua sensível relação amorosa, disse que se jogaria ao chão para que os carros passassem por cima caso ele não mudasse de médico. Ameaçou e de fato atirou-se ao chão.

Creio sinceramente que a garota alcançaria êxito em sua reivindiação caso o carro que a poucos metros se aproximava estivesse em condições de frear.

Josué Mendonça
Enviado por Josué Mendonça em 24/02/2006
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