CABEÇA DE BOI

A Ilha de Bananal banhada pelo rio Araguaia segue a cadência do rio. Calmo, bonito e mesmo na cheia impressiona, exige respeito, mas não mete medo.

Do nosso acampamento na ilha o vilarejo mais próximo era Santa Isabel do Morro dos Burocratas. Lá ficava a aldeia dos índios Carajás, o Hospital do Índio, a base aérea da Aeronáutica - que era responsável pelo campo de aviação -, a casa do Posto da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, e as residências dos moradores e funcionários da Fundação, conhecida como casas dos “brancos”.

Santa Isabel tinha energia elétrica vindo de um gerador diesel. Não tinha água encanada, ruas calçadas, comércio, esgoto e mulher bonita.

O que oferecia dinâmica à Vila era uma barulhenta e cotidiana luta patrocinada entre os inúmeros cachorros dos índios versus os incontáveis cachorros dos brancos.

Fui contratado pela FUNAI para ajudar a construir a primeira escola indigenista do Brasil -, na Ilha de Bananal, que nunca existiu.

Aproveitando o sombreamento de uma árvore próxima ao rio Araguaia, fizemos o nosso acampamento de lona esticada para proteger do sol e chuva. Estendemos as redes por baixo e estava pronta a nossa moradia.

Passava todo o dia fora do “acampamento”, em um momento, abrindo valas, preparando a fundação da Escola, em outro, nas matas, derrubando e descascando as pindaíbas (arvores redondas, parecidas com eucaliptos, nativas do pantanal) para servir de esteios na fundação ou secando folhas das palmeiras tucum, baixinhas e espinhentas, que serviriam para o futuro teto da escola.

Éramos cinco amigos. Quando voltávamos, obviamente cansados, era natural que ninguém queria fazer a lida da cozinha.

Porém, lá não tinha shopping, lanchonete, self-service ou qualquer botequim perto e nem longe. E como só comíamos durante o dia quando dávamos sorte de encontrar uma fruta no mato, uma raiz mais suculenta, um favo de mel retirado às duras penas de um buraco de árvore, é de se imaginar o tamanho da fome.

Para um problema urgente uma solução simples. Estava estipulada a refeição única.

Aproveitando que na ilha, naquele tempo, ao matar um boi, ninguém comia os miúdos, o rabo e nem a cabeça do animal abatido pelos funcionários da FUNAI. Passei então a confiscar essa parte. A cabeça era a mais cobiçada.

Vai aí a minha receita.

Ingredientes: Uma cabeça de boi inteira e ½ quilo de feijão, sal e pimenta.

Primeiro como cozinhar. Faça uma fogueira, deixe ficar brasas. Coloque por cima das brasas mais lenha (escolha troncos grossos), você vai precisar de calor por umas cinco horas. Arrume duas pedras entre a fogueira para servir de apoio. Pronto, já temos o fogão, vamos em frente.

Em uma lata de tinta, óleo ou qualquer outra coisa, desde que tenha o volume de 18 litros, coloque ½ quilo de feijão preto, mulatinho, loirinho, moreninho, o que aparecer. É bom “catar” o feijão por causa das pedras.

Pegue a cabeça do boi, com uma faca retire o couro. Faça uma cirurgia e retire pela garganta (do boi, minha gente) a língua. Se a cabeça não couber na lata, rache-a no meio com um machado e repita a operação.

Encha a lata com água do Rio Araguaia. Se não tiver, qualquer uma.

Ponha sal necessário e pimenta a gosto. É bom colocar a pimenta porque aguça a fome e disfarça algum erro. Coloque em seguida a lata sobre as pedras no centro do braseiro.

Suspenda a lata pelo menos um palmo de altura do fogo.

Vá trabalhar.

Deve ficar no mínimo seis horas cozinhando. Quando voltar, atice o fogo, ponha mais um pouquinho de água, prove o sal e a pimenta.

Tudo bem, levante a cabeça, (do boi é claro), pelo chifre e sacuda bem. As carnes devem soltar e a queixada cai na lata.

É bom lembrar que a pele da língua continua nela. É só retirar a língua da lata, raspar com uma faca e voltar pro “caldeirão”.

Está pronta a deliciosa cabeça do bananal.

O olho do boi cozido era o melhor aperitivo. Coloque-o inteiro na boca e morda. Ele vai encher as suas bochechas com um líquido salgadinho. Vai sobrar na boca uma parte sólida que fazíamos campeonato de cuspe à distância com ela. É uma delícia.

Em tempo: Tentamos, mas, não há qualquer aproveitamento culinário para o chifre