A GRITA DE ONTEM E AS CATEDRAIS HUMANAS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.  

A grita de ontem foi grande. Tão grande que meu pensamento se interrompe frequentemente, como que entrecortado por um leve susto que dá e passa, que dá e passa. Não me incomoda muito o fato de ser ou não ser compreendida, mas incomoda-me profundamente que as minhas palavras possam estar desenhando uma imagem que não corresponda ao caráter de Deus.

Moisés, por representar mal o caráter de Deus não entrou na Terra Prometida, embora com lágrimas tenha buscado fazê-lo. Não quero ser impedida de entrar na terra. Nessa terra que é o céu. Então, para concluir de vez o que já se instalou, e para corrigir quaisquer eventuais falhas que eu possa ter apresentado, ao narrar a minha experiência com Deus, quero responder a alguns questionamentos que foram levantados.
 
A Bíblia afirma em Romanos 8:28 que “todas as coisas conjuntamente cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.” Eu creio nisso. Creio também que “todas as  coisas “ quer dizer exatamente isso o que quer dizer: “ todas as coisas.” Observem que essa expressão está sendo modificada pelo advérbio “conjuntamente”.  

A nossa dificuldade decorre do fato de que, do ângulo em que nos encontramos, nesta vida, não conseguimos observar “todas as coisas conjuntamente”. Pensamos estar vendo todas as coisas e ainda que estivéssemos, - e não estamos - não conseguiríamos fazê-lo conjuntamente, isto é, vendo passado, presente e futuro de maneira simultânea, tendo uma única seta como direcionamento do nosso percurso.

 Deus não é tão óbvio e os seus designios são inescrutáveis. Quem tiver dúvida disso, que leia o Salmo 139 da Bíblia Evangélica e 138 da Católica Romana. Para complicar, surge  mais essa questão: temos nós duas bíblias? 

O homem tem o péssimo costume de querer todas as suas perguntas respondidas agora. Ele quer, porque foi contemplado com a faculdade de pensar e - porque pensa,- sente-se no direito de exigir que nenhum caminho lhe seja excessivamente misterioso. Um pouco, pode. Desde que não afronte a sua dignidade de homus erectus. 

 Sinto muito: Deus não responderá de maneira objetiva, a nenhum dos nossos elaborados questionamentos. Deus é simples demais para responder a tantas perguntas complexas. Vivemos o presente e conhecemos parcialmente o passado. Do futuro, nada sabemos. E enquanto nascemos, crescemos, vivemos, e morremos fazendo tantas perguntas, Deus apenas é. 

Humanamente falando, nós somos – em essência-  uma grande pergunta e essa grande pergunta faz de nós seres sem uma grande resposta. Somos os porta vozes de uma ignorância eterna. E às vezes, eu me pergunto, só para mais me perguntar: será que o cego sabe que não enxerga? Para o cego o que é “não enxergar"?

 O enigma que parece ser eterno é este: por que nos foi dado  a potencialidade da grandeza de Deus, a nós que não comportamos sequer a magnitude de homens?
 
Com a medida de fé que foi dada a cada um – mas eu tenho a minha – com essa pequena medida de fé, eu busco viver. Um dia, eu cuidei apenas de não ser o  náufrago que recusava a corda; em outro dia, para o invisível me lancei, enquanto me perguntava em que degrau, na escada de Jacó, Deus estaria estendendo para  mim, a sua grande mão.  Por essa escada, - que simboliza Cristo vindo em busca da humanidade perdida, - por essa escada,  cada homem e mulher pode facilitar ou dificultar a mão estendida de Deus, em sua direção. E escolher recolher a própria mão, caso assim o deseje.  
 
 Isso é o que importa agora: não dificultar o trabalho do Senhor, um trabalho tão minucioso quanto o de um artesão que se debruça sobre a sua obra.  Quando adentrarmos a eternidade, veremos como Ele fez esse trabalho de maneira solitária, e como esse trabalho lhe foi grandemente penoso,  pelo nosso excessivo perguntar. Nesse dia – que não será dia, porque será eternidade e eternidade não tem dia -  Romanos 8:28 fará todo sentido para nós como já faz, agora,  para Ele.
 
 Até lá, a moça da cor de azeviche e grandes olhos negros terá que confiar que antes que a despensa esvazie a providência de Deus virá, como veio para a viúva de Sarepta, que teve o azeite multiplicado nas vasilhas, por obra e graça do Criador.
 
 Até lá, eu irei aonde Deus me enviar e falarei aonde Ele permitir. E se Ele não permitir, ficarei calada. Bem pode ser que me queira sentada no sofá, em minha casa, ministrando a pessoas que jamais cruzariam os umbrais e os portais da religião. Ora, se não! Nós gostamos muito de púlpítos, mas Deus ama as catedrais humanas, feitas do pó da terra, de maneira irregular e misteriosa, como parece ter sido feita a catedral da Sagrada Família, pelas mãos do arquiteto catalão Antonio Gaudí, cuja inspiração talvez tenha sido a lembrança de que o pó  é templo do Espírito Santo de Deus.
 
O texto que liberei ontem aponta para Deus e seu trabalho de escrever parábolas, enquanto constrói a nossa história. Leitores atentos, verão que a ênfase da narrativa  está no fato de que Deus ainda fala na terra. Antes que acontecesse, Ele falou que aconteceria. Isso não é tremendo? Tudo o mais é circunstancial. Mas há pessoas  que diante de um lindo quadro de Cervantes, preferem se fixar no focinho do cavalo. E o focinho do cavalo tem uma baba grossa. Meus queridos!
 
 A boa notícia que me encoraja a prosseguir, como sugeriu Tristão de Alegrette é esta: Deus interage conosco  na terra.  A galáxia em que Deus habita não está tão distante da nossa, a ponto de que Ele não possa debruçar-se, dar uma espiadinha básica, e decidir que algo possa ser melhorado.  Que, para nós, pode  até parecer ter piorado.  
 
De que jeito, enfim,  Deus quer que eu faça o que ele deseja que seja feito? Pode-se ensinar, calando. Pode-se aprender, apenas observando. Pode-se ser mais útil para Deus, longe dos púlpitos, do que pertencendo aos portais da religiosidade. Eu já vivi o suficiente para saber das coisas todas que sei, acerca do mundo religioso. Sem mágoas.
 
No meio de tantas possibilidades que se vislumbram de maneira apenas sutil, Deus é a sutileza que compõe uma parábola a cada dia. 
 
E quem tiver   olhos que veja.  E quem tiver ouvidos que ouça! 

 

* A foto é da igreja Sagrada Família em Barcelona, Espanha.