LIVRES PARA SEMPRE ATÉ AMANHÃ.
                    ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

Às vezes, eu me descuido e clico em "incluir texto" e aí já é tarde demais. Não por falta de ter o que incluir, mas por excesso de inclusividade. Nesta tarde, que se desenrola de uma forma tão diferente, olho em volta e vejo que cachorros são cachorros e que eu sou gente. Mas, hoje  também sou a árvore que vi logo pela manhã. Dei-lhe um nome: árvore-eu.

Cheguei mais cedo a um lugar, que não vou contar aonde é: não vou contar. E por ter chegado cedo, fui a primeira a chegar. O salão estava vazio e caminhei até a porta: não havia nada para se ver, mas  fiquei procurando. 

Sei que bem procurado, Deus se revela: mais do lado de fora, do que do lado de dentro. E se Deus se revelar para mim, à tarde, sempre incluo  um texto a mais para você. E se Ele não se revelar, fico procurando até encontrá-lo dentro de mim. 

Dentro de mim é mais fácil, mas não tem o gosto do encontro. Ser achado dentro, é diferente de ser achado fora. Ser achado fora é assim como quando você encontra aquele amigo que vê todos os dias, mas com o qual tem uma amizade sempre renovada em sorriso, em abraço, em cumplicidade, e em nada. 
A maior amizade é aquela que também compartilha o nada, e o nada de um amigo, que se junta ao  nada de outro amigo,  acaba por construir a realidade do mundo. 

Ser achado dentro, é de uma intimidade tamanha que força a pular o preâmbulo e ir direto ao processo de criação da não-realidade do mundo. Pronto: foi devidamente encomendado um segundo destino que corra paralelo ao primeiro.

Eu sou uma mulher com dois destinos.

A árvore-eu: Não sei o seu nome, também não sei o meu. Sei que no céu, teremos um novo nome. Por enquanto, os amigos me chamam Ana Maria, Ivo me chama de Ana e meu pai me chamava de Anita e depois de Nitinha. Até que eu proibi. Hoje não proibiria mais: acho que Anita-Nitinha  foi a única manifestação de um amor eficaz que recebi e joguei pela janela. Hoje eu seria Anita Garibaldi, se ele assim o desejasse. Mas o que ele queria, era apenas o diminutivo, a expressão máxima de amor das pessoas  que ficam derreadas com qualquer mínima dose de  ternura.   

A árvore-eu: Baixinha, menor do que a minha altura. Mas não tem importância, também me sinto baixa e as vezes parece  que me faltam pés para pisar o duro solo em que me encontro.

 Sendo baixinha, esparramou-se para os lados- a árvore.  Luto um pouco para não esparramar-me para os lados. Pesava 50 kg quando casei, e agora peso 60. De puro músculo, aço e concreto. 

Meu sogro, um dia, disse para o Ivo: - “essa menina não tem carnes, não?” – “É assim que eu gosto,” ele respondeu. -Eu tinha 20 anos e, apesar da pouca idade,  já sabia que essa não era a melhor forma de dizer "te amo." Mas aceitei porque já era tarde. Eu já comprara esse homem, e já o levara para casa embrulhado em papel cinza chumbo. Côr de macho. 

  Hoje, as metáforas ficaram mais conclusivas: "Minha S10 é velha, mas eu conheço todos os defeitos que  tem, e sempre cuidei bem dela. Vai que eu troco esse carro velho,  e acabo me iludindo na troca por um carro mais novo." 

O que eu sei é:  carro zero, ele sabe que não vai encontrar de graça e o preço é caro. Por um nacional vai pagar o preço de um importado. Só pelo cheiro. 

Olhando nos olhos dele,  respondo: "também te amo! Isso quando estou de bom humor. Se não estiver, digo: "vai te catar." (Quem será que inventou essa rasteiríssima expressão idiomática?) 

A árvore-eu: preste atenção porque o texto se aproxima do desenlace, daquele ponto onde - ou se escreve algo que valha a pena  ter lido ou a cobrança será inevitável: "mas perdi preciosos dois minutos do meu dia, a troco de nada?" Espero que não seja a troco de nada.

O que vi na árvore foi assim: Plantaram-na num canteiro estreito, colado ao muro. Não é propriamente uma árvore, e nem poderia ser, pela exiguidade do espaço que lhe ofereceram para ser o que a  semente lhe oferecia em promessa. 

 Abortaram a promessa. A semente que continha todas as possibilidades passadas, presentes e futuras da condição de ser,  foi quase totalmente invalidada pelo pedacinho de terra dura, calcitrada, desmineralizada. 

E a árvore, coitada, fez o que pôde. Cresceu para os lados, fazendo dos seus ramos um trançado entre galho e galho, cada um dizendo para o outro: “somos todos irmãos, não chore não!” No meio dos galhos, a árvore respira ela mesma: seu coração pulsa exausto pelo ritmo lento que lhe inflinge  a terra. 

Pois no meio dessas impossibilidades, as flores amarelas! As flores amarelas designadas para dizer assim: “não tenho cheiro de flor de cemitério, tenho cheiro de vida, tenho gosto de vida, tenho amor de vida” - e esse dizer é a sua misericórdia renovada a cada manhã.  

E para completar, eu vi o que faltava ver: um passarinho entrou, e logo foi seguido pela passarinha, e ficaram os dois juntinhos, num piadinho miúdo, procurando um espaço no intricado dos galhos para namorar, e para  fazer o ninho, e para perpetuar a vida, e para cantar entre os escombros da humana insensatez. 

Tristeza de hoje, eu vos digo: olhe para a árvore, e olhe para as flores, e olhe para os pássaros, e olhe para o céu,  esqueça-se de mim  e permita-me deixar-te aí  entre o emaranhado de galhos secos, aspirando o perfume da vida, enquanto eu me vou em busca de um pensamento verdadeiramente novo.

Pronto: Estamos livres para sempre até amanhã!