Ternas Lembranças

A barra era um imenso pontilhão que servia de passagem, em outro ponto do arroio Santa Maria, o mesmo gigante que solapava barrancos e plantações, dizimando animais indefesos, quando enfurecido pelas águas que transbordavam de seu leito.

Fazia parte do nosso lazer, algumas vezes, passar o dia na casa de meus padrinhos e o prazer da chegada era imenso.

Passando a barra, andava-se pelo caminho até a porteira que dava acesso à imensidão do verde campo.Lá de cima, avistava-se a casa grande e acolhedora, o pé de parreira fazendo sombra pelo lado da cozinha, abrigava uma caturrita faladeira, que vivia pedindo café. Fora recolhida ao cair de um ninho das imensas paineiras da baixada do campo. Essas aves fantásticas, de nome real cotorras, viviam em colônias no alto das paineiras e faziam seus grandes ninhos da seda da paina.

Com que alegria éramos recebidos naquela casa!

Minha madrinha, amiga extremosa, tinha sempre uma palavra de carinho, abrigava-me no colo, oferecia-me mimos e assim tornou-se minha infância uma pessoa respeitada e insubstituível: a madrinha Nair.

Lembro que certa vez, enquanto meu pai tratava da saúde, tive uma longa temporada em companhia deles. Adorava as brincadeiras no pátio, em companhia da amiga Neida. Às vezes, jogávamos até bolinha de gude. Como era gostoso!

Uma vez, sorrateiramente, coloquei uma bolinha de estimação “olho de gato” num buraquinho de assoalho. Minha amiga quase chorou e soube há bem pouco tempo que só veio encontra-la quando construíram a nova casa.

À noite, reuniam-se todos à volta da mesa da cozinha com fogão à lenha a conversar e fazer planos. Uma das minhas brincadeiras prediletas era cantar embaixo da mesa.

Pela manhã, acordávamos com a caturrita pedindo café. O fogão à lenha com as leiteiras sobre a chapa conservava o leite para o café, ordenhado na mangueira da casa. O pão sovado e assado com capricho, a manteiga batida na hora e o doce, ali mesmo preparado eram indispensáveis na mesa que a pretinha Valmira preparava com tanto carinho para a família.

À tarde, ou brincávamos no pátio ou íamos para o boliche do meu padrinho. Construído à beira da estrada, era de fácil acesso àqueles que ali vinham em busca de mantimentos. Que horas agradáveis passávamos lá! Comíamos balas, tijolinho (aquelas delícias feitas de bananas) e rapaduras em palha, enquanto os mais velhos tomavam chimarrão.

Uma sainha de crochê rosa, presente para a afilhada, na festa de batizado foi um mimo que nunca esqueci. Havia também a cobertinha da lã de ovelhas, esquiadas no próprio campo, que muito me aqueceu no inverno e fora cardada e tecida pelas mãos habilidosas de minha madrinha.

Uma lembrança que guardo dessa amável pessoa é de vê-la, nas horas de descanso, sempre com um livro à mão.Tinha a leitura como um vício fascinante. E eu, criança já observava esse exemplo. Conservava a Bíblia sobre uma toalhinha de crochê que ornamentava uma mesinha alta, na sala grande de tábua corrida. Lia Júlio Verne e havia gostado muito de “A volta ao mundo em oitenta dias.” Com mais de noventa anos manifestou o desejo de reler o livro. Costurava com tamanha habilidade para todos os filhos e adquiriu, pelas exigências da vida, extrema perícia na aplicação de chás e remédios caseiros, sem contar as massagens que confortavam os machucados das quedas tão próprias da nossa idade.

Lembro ser ela, a amiga que minha mãe consultava, nos momentos de indecisão: comadre Enilda e comadre Nair, assim se chamavam.

Faz pouco tempo, falávamos da amizade sincera que une algumas pessoas e uma de minhas irmãs lembrou de um fato que me contou com todos os detalhes. Recordou ela, que certa vez nosso pai se preocupou muito quando adoeci, pois tinha alguns meses de idade e ocorreu-lhe avisar meu padrinho, mandando como mensageiro, portando uma carta, um de nossos empregados, o velho seu João Nogueira, cruzando estradas e campos, montado num cavalo escolhido a dedo. Deveria ir rápido.

Quando menos esperavam, o compadre Calisto chegou a Casa Branca, montado em seu cavalo, carregando uma maleta com os preparados homeopáticos, o que era sua especialidade.

Por lá se hospedou em nossa companhia, com extremoso cuidado a medicar-me de hora em hora e só partiu quando me viu em perfeitas condições de saúde.

O que mais pode marcar tão fundo na vida de um ser humano, do que se saber amada e protegida por seres tão especiais? Ser, tão divinamente premiada pelo que os homens chamam de destino?

Quando partiu de vez, não pude vê-lo. Estava na casa de uma das filhas passeando, em companhia dos netos. Sempre contava as peripécias e gracejos que eram proferidos pelos pequenos. Era um “avô coruja” com todos os netos que começavam a chegar.

Partiu depois de cumprida a sua missão: trabalhado, encaminhado os filhos e adquirido um certo patrimônio, fruto de muito esforço desde a morada na chamada Guarda Nova.

Em Curitiba, ao receber a notícia de sua despedida, vieram-me à lembrança todos os bons momentos, passados na casa grande da parreira, da caturrita faladeira e das paineiras de grandes ninhos. No boliche, comendo gulodices, nos churrascos assados na brasa, em valas no chão, conversando e chimarreando com meu pai.

Minha madrinha, aos noventa anos, conservava uma lucidez invejável, companhia agradável, aconselhava e incentivava nos momentos difíceis. Amava a companhia dos filhos e netos. Até nisso parecia-se muito com minha mãe.

Preparou-se para partir, ao viver um século, e o fez, quinze dias após a partida de minha saudosa mãe, presença constante em minha casa, também lia muito, recostada ao sofá na minha sala de trabalho. Conhecia um a um todos os livros que tenho catalogados em minha estante. Entre um trabalho e outro, girava a cadeira e voltava-me para ela. E aqui, conversávamos, confidenciávamos, planejávamos. Cobriu de verdes e flores o meu pequeno quintal, escolheu o jacarandá que, agora sob a chuva da manhã, umedece a grade e os vidros da minha janela.

Ambas eram companheiras e amigas. Partiram, deixando um imenso vazio na vida da família e dos amigos, mas sabemos, que pela vida exemplar que aqui viveram, encontram-se felizes em outra dimensão.

Eliza Fernandes
Enviado por Eliza Fernandes em 26/02/2006
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