MINHOCA COMPRANDO PICANHA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
Palavras não conseguem traduzir o completo que existe na milésima partícula de um sentimento. A cintilância não se descreve em palavras. Essa impossibilidade de descrever o de dentro, faz de nós seres estereotipados, por fora. Todos igualmente iguais. A inteligência sempre chegando na frente, e se impondo como máscara.
Nesta pequena cidade de 20 mil habitantes, faço um laboratório sempre que vou ao supermercado. Que é como uma praça pública. Aos sábados, pela manhã, os homens encontram-se em fila na secção de carnes, numa conversa animada que os leva a esticar o pescoço para trás e para frente- como gansos; as mulheres, na secção de verduras, abraçando repolhos, pepinos e tomates, trocam amenidades - quando a vida lhes parece amena. Caso contrário, abaixam o olhar e com isso querem dizer: "deixem-me em paz." Como minhocas.
Pois eu prefiro o "deixem-me em paz" da minhoca que não encabula, à saudação delicada, estéril, fútil, e que não diz nada.
-Oiiii!!!
-Oi!
O que pergunta esse "oiiii"!!!? E o que responde esse outro "oi"!?
- Tudo bem?
- Tudo bem.
A convenção determina que quando alguém pergunta se está tudo bem, o outro responda que está tudo bem. Mesmo que esteja tudo mal. Ninguém espera que se desfie um rosário de lamentações, quando a palavra é apenas uma forma de se mover, delicadamente, por entre o mundo dos homens. E retornar rapidamente ao seu próprio mundo.
Exceção seja feita aos velhos e crianças. Pergunte a um velho se está tudo bem, apenas se não estiver com pressa. Porque a resposta será da mais profunda sinceridade. Não haverá cintilâncias, haverá reentrâncias. Você será convidado a penetrar no mundo do seu estômago, que tem apresentado gastrite; no mundo das suas artérias, que estão entupidas pelo excesso de colesterol; no mundo das articulações, que os fazem claudicar, enquanto passeiam pelo mercado exibindo a realidade que se delineia sem palavras.
Isso é tão lindo! Sempre me comove a sinceridade do velho! Na hora em que se espera que ele seja apenas homem, ele é Deus!
Quando encontro um velho e tenho tempo, páro para ouvir Deus falar comigo. E Deus me fala assim: " Tudo nesse mundo tem o selo do provisório. Seu carro é novo? Vai ficar velho. Sua casa acabou de ser construída? Vai virar ruínas. Seu corpo está funcionando bem? A qualquer hora vai falhar." O velho é a realidade do mundo. O velho que usa dentaduras. O velho que usa bengala. O velho que usa chapéu. O velho que senta no banco da praça.
Anos atrás tentei evangelizar seu Chico Patrão. Aposentado, ele vendia os pães que a filha produzia em casa. Frequentador do Clube da Terceira Idade, assíduo dos forrós da casa, minha palavra sobre vida eterna caiu no vazio. Ele me disse sem rodeios, preferir a vida agora. Só hoje escrevendo este texto, me dei conta: por onde andará o Patrão? Dado o adiantado da hora, se vivo estiver, já lhe faltarão pernas para o forró. Boa hora para se lhe oferecer a vida eterna que, via de regra, ninguém recusa quando a de agora vai se esvaindo em gotas.
Esse diálogo transporta-nos de um ponto inútil para outro útil. Mas as perguntas que não cabem respostas - às quais sou obrigada a fazer quando passeio pelo mundo dos homens - afrontam a minha obsessão pela mais delicada verdade.
Por que a pergunta, se já se sabe a resposta? Por que se diz a uma mãe que acabou de perder o filho: "como você está?" se já se pressente que ela não está ali, que ali está apenas o seu espectro que veio comprar macarrão para alimentar os outros filhos da casa?
Que inútil me parece ser esse jeito de existir que nos rouba a espontaneidade! Contudo, preciso reconhecer: não posso chamar de hipocrisia o que é apenas naturalidade. No mundo, o abstrato se desmancha no ar como bolha de sabão. Mas o concreto é de uma eternidade imortal.
O abstrato é como o sentimento da mãe que perdeu o filho, sentimento que evaporou para o mundo quando escorreu para fora a última lágrima. Depois de um tempo chora-se para dentro, e o mundo que não vê a lágrima, pergunta inocentemente: - "como você está?" Esse tipo de pergunta só quer ouvir uma única resposta: " estou bem, graças a Deus."
Então, preenchidos todos os formalismos, aquele que fez a pergunta vai embora feliz: ele viu o concreto e o concreto é de uma eternidade imortal. Nunca mais lhe ocorrerá enviar uma prece ao céu por aquele ou aquela que disse: "eu estou bem, graças a Deus", mesmo estando "mal, graças a Deus."
Às vezes, fico tão envergonhada da minha-nossa humanidade, que suspendo a existência por uns tempos: não vou ao mercado, peço tudo por telefone. Se me falta a picanha, sobra-me o substrato da realidade de que é feito o mundo. Não saio de casa.
Depois, durante a semana, como quem desperta, vejo o céu e vejo as nuvens. E nesse ponto, a vida recomeça.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
Palavras não conseguem traduzir o completo que existe na milésima partícula de um sentimento. A cintilância não se descreve em palavras. Essa impossibilidade de descrever o de dentro, faz de nós seres estereotipados, por fora. Todos igualmente iguais. A inteligência sempre chegando na frente, e se impondo como máscara.
Nesta pequena cidade de 20 mil habitantes, faço um laboratório sempre que vou ao supermercado. Que é como uma praça pública. Aos sábados, pela manhã, os homens encontram-se em fila na secção de carnes, numa conversa animada que os leva a esticar o pescoço para trás e para frente- como gansos; as mulheres, na secção de verduras, abraçando repolhos, pepinos e tomates, trocam amenidades - quando a vida lhes parece amena. Caso contrário, abaixam o olhar e com isso querem dizer: "deixem-me em paz." Como minhocas.
Pois eu prefiro o "deixem-me em paz" da minhoca que não encabula, à saudação delicada, estéril, fútil, e que não diz nada.
-Oiiii!!!
-Oi!
O que pergunta esse "oiiii"!!!? E o que responde esse outro "oi"!?
- Tudo bem?
- Tudo bem.
A convenção determina que quando alguém pergunta se está tudo bem, o outro responda que está tudo bem. Mesmo que esteja tudo mal. Ninguém espera que se desfie um rosário de lamentações, quando a palavra é apenas uma forma de se mover, delicadamente, por entre o mundo dos homens. E retornar rapidamente ao seu próprio mundo.
Exceção seja feita aos velhos e crianças. Pergunte a um velho se está tudo bem, apenas se não estiver com pressa. Porque a resposta será da mais profunda sinceridade. Não haverá cintilâncias, haverá reentrâncias. Você será convidado a penetrar no mundo do seu estômago, que tem apresentado gastrite; no mundo das suas artérias, que estão entupidas pelo excesso de colesterol; no mundo das articulações, que os fazem claudicar, enquanto passeiam pelo mercado exibindo a realidade que se delineia sem palavras.
Isso é tão lindo! Sempre me comove a sinceridade do velho! Na hora em que se espera que ele seja apenas homem, ele é Deus!
Quando encontro um velho e tenho tempo, páro para ouvir Deus falar comigo. E Deus me fala assim: " Tudo nesse mundo tem o selo do provisório. Seu carro é novo? Vai ficar velho. Sua casa acabou de ser construída? Vai virar ruínas. Seu corpo está funcionando bem? A qualquer hora vai falhar." O velho é a realidade do mundo. O velho que usa dentaduras. O velho que usa bengala. O velho que usa chapéu. O velho que senta no banco da praça.
Anos atrás tentei evangelizar seu Chico Patrão. Aposentado, ele vendia os pães que a filha produzia em casa. Frequentador do Clube da Terceira Idade, assíduo dos forrós da casa, minha palavra sobre vida eterna caiu no vazio. Ele me disse sem rodeios, preferir a vida agora. Só hoje escrevendo este texto, me dei conta: por onde andará o Patrão? Dado o adiantado da hora, se vivo estiver, já lhe faltarão pernas para o forró. Boa hora para se lhe oferecer a vida eterna que, via de regra, ninguém recusa quando a de agora vai se esvaindo em gotas.
Esse diálogo transporta-nos de um ponto inútil para outro útil. Mas as perguntas que não cabem respostas - às quais sou obrigada a fazer quando passeio pelo mundo dos homens - afrontam a minha obsessão pela mais delicada verdade.
Por que a pergunta, se já se sabe a resposta? Por que se diz a uma mãe que acabou de perder o filho: "como você está?" se já se pressente que ela não está ali, que ali está apenas o seu espectro que veio comprar macarrão para alimentar os outros filhos da casa?
Que inútil me parece ser esse jeito de existir que nos rouba a espontaneidade! Contudo, preciso reconhecer: não posso chamar de hipocrisia o que é apenas naturalidade. No mundo, o abstrato se desmancha no ar como bolha de sabão. Mas o concreto é de uma eternidade imortal.
O abstrato é como o sentimento da mãe que perdeu o filho, sentimento que evaporou para o mundo quando escorreu para fora a última lágrima. Depois de um tempo chora-se para dentro, e o mundo que não vê a lágrima, pergunta inocentemente: - "como você está?" Esse tipo de pergunta só quer ouvir uma única resposta: " estou bem, graças a Deus."
Então, preenchidos todos os formalismos, aquele que fez a pergunta vai embora feliz: ele viu o concreto e o concreto é de uma eternidade imortal. Nunca mais lhe ocorrerá enviar uma prece ao céu por aquele ou aquela que disse: "eu estou bem, graças a Deus", mesmo estando "mal, graças a Deus."
Às vezes, fico tão envergonhada da minha-nossa humanidade, que suspendo a existência por uns tempos: não vou ao mercado, peço tudo por telefone. Se me falta a picanha, sobra-me o substrato da realidade de que é feito o mundo. Não saio de casa.
Depois, durante a semana, como quem desperta, vejo o céu e vejo as nuvens. E nesse ponto, a vida recomeça.