A ÉGUA CONSELHEIRA

A ÉGUA CONSELHEIRA

Quase véspera de feriado. O dia no trabalho não passava. A turma já havia marcado o encontro no bar do Mozart, nosso escritório, lar, igreja e zona de nossa juventude, para marcarmos a pescaria. Era uma das etapas que eu mais gostava.

Entre cervejas e cachaças, torresmos e muita conversa ficava determinado finalmente, o dia e a hora da partida para Velho da Taipa, município de Pitangui, cidade cerca de 200 quilômetros de Belo Horizonte. Lá encontraríamos com o essencial amigo e parceiro José Maria. Negro forte, dono de uma risada franca e de uma cumplicidade a toda prova.

A pé seguindo o trilho da abandonada estrada de ferro, carregando a extensa tralha misturada em sacos o lampião, querosene, arroz, feijão, carne seca, macarrão, molho pronto, objetos de uso pessoal e nunca menos de 48 garrafas de cachaça.

E sem sentir o peso da carga, íamos equilibrando sobre os trilhos, comentando sobre as namoradas, ou gozando um amigo. Na curva já avistávamos as três ultimas casas dos funcionários da estrada de ferro, abandonadas há tempo. Tinha um quarto, cozinha com fogão de lenha e no “quintal”, um buraco no chão com a proteção caindo aos pedaços que chamávamos de sanitário. Nos fundos dava para avistar, corria o rio Pará.

Perto dali, morava um homem, para nós um velho ermitão, que vivia na beira do rio, num casebre de um só cômodo. Tinha como companhia uma égua que era a sua ouvinte. O velho conversava com ela o dia todo. Não montava e não a usava como meio de transporte. Segundo ele, era a sua companheira que não pedia, não exigia e não implicava com nada, mesmo quando ele ficava mais de duas horas contando para a paciente égua, o mesmo caso. Ela era sua companheira de exílio voluntário e, como ele, não fazia nada.

Em uma oportunidade, eu fui procurá-lo para ver se me emprestava uma panela para cozinhar um galo roubado. Ele escutou a minha proposta que incluía o pagamento de uma coxa do frango pelo empréstimo da panela.

“Não carece não. Eu faço o frango em troca da coxa do pescoço e da cabeça”. Pouco a perder e muito a ganhar fechei o negócio.

Ele passou a mão no galo que já estava morto. É que o Zé Maria apertou demais o pescoço dele para ele não gritar. O galo velho não gritou, mas também não respirou e pronto, o Zé adiantou uma tarefa.

Bem, Velho da Égua como o apelidamos, levou o galo para o quintal perto do poço de água. Com uma enxada misturou terra comum e água. O barro virou uma massa marrom e ficou moldável. Nem mole e nem duro e deixou descansar.

Então, pacientemente o velho abriu a barriga do galo da ponta do peito até o ânus e retirou tripas e miúdos. Mas deixou o galo com todas as suas penas. Lavou bem por dentro e esfregou em seu interior uma pasta bem temperada com sal, salsa, cebolinha, limão e pimenta do reino.

Depois, começou a cobrir o galo com o barro até formar uma grande bola que por mágica engoliu o galináceo, não aparecendo nada dele, nem uma pena. Preparou o forno de barro (um velho cupinzeiro), até formar um braseiro forte. Pegou a grande bola de barro e colocou para assar.

Ficou lá por mais de uma hora. Enquanto de cócoras ao lado do forno, mantínhamos uma conversa animada com o Velho, que tinha uma característica. Ele nunca tomava a iniciativa de falar. Apenas respondia o que lhe era perguntado.

O senhor sabe se aqui tem capivara? Peguntei. Ele respondeu “muitas”. Não satisfeito emendei mais uma pergunta. E peixe? O Rio tem muito? O velho deu uma tragado no cigarro de palha, uma cuspida e respondeu: Tem! Ai eu perguntei: e elefante tem muito? E o Velho olhou para a éguinha e disse. “Dos marrons tem. Inda outro dia passou um bando voando pro aqui, não é neguinha? Com a certeza que a égua lhe daria o seu aval.

Desisti de perguntar e passamos a beber nossa pinga nos copos feitos de bambus, a olhar para o chão, para o céu, dar uma pitada no cigarro até que a bola de barro começou a trincar. O velho levantou e com a ajuda de um pau retirou o bolão de barro do forno e passou a quebrar com as costas do facão.

Os pedaços de barro iam saindo levando as penas grudadas neles. E as que ficaram foram facilmente retiradas. O galo estava cozido por inteiro, com os pedaços desfazendo de mole, exalando um aroma incrível. Simplesmente divino. Antes de irmos embora levando o nosso almoço, ele cobrou a dívida. Deixamos uma coxa o pescoço e a cabeça do galo e, ali mesmo, na nossa frente, ele presenteou à sua Égua Conselheira com o pescoço e a cabeça enquanto comia a coxa satisfeito.