Sobre jumentos e Monalisas

Não me lembro bem se era Mozart ou Beethoven, embora isso seja mero detalhe. Lembro que houve um passeio escolar. Só não lembro quem promoveu. Mas isso ainda é o de menos. Sei que eram crianças de alguma escola pública, de alguma cidade satélite do Distrito Federal, de algum desses bairros suburbanos. Foram ouvir numa bela manhã de agosto a orquestra sinfônica no Teatro Nacional de Brasília.

Imagino o ônibus lotado, a euforia da criançada, o calor infernal, o motorista aos resmungos, o grupinho no fundão do ônibus cantando chora-bananeira, bananeira chora. As meninas de um lado, os meninos do outro. Elas, aos cochichos, com aquele ar de quem está sempre conspirando alguma coisa. Eles, espalhafatosos, naquela estranha mania de querer chamar atenção. A professora, coitada, já não agüentando os capetinhas sonha com outros verões mais amistosos, e pede constantemente que eles tirem os pés de cima do banco, que isso não são modos, e todo momento promete advertências pro Joãozinho caso este não se comporte que nem gente.

- Ê Joãozinho, é sempre você!

Sempre o Joãozinho, sempre ele... Imagino o Joãozinho resmungando “tô nem aí”, tocando a chora-bananeira pra frente, em pé, no banco, qual maestro. Às vezes regendo com a turma do fundão a famosa Ópera do Motorista:

"Motorista, motorista, olha o poste, olha o poste..."

Joãozinho é maestro? Não. Joãozinho é o subversivo. A peste. O sem-futuro. A maçã estragada no pobre ônibus suburbano. Os professores todos já desistiram de Joãozinho... Mas não vim aqui para falar mal dele. Ele é quem se meteu no meio dessa crônica, essa peste!

Eu poderia falar sobre a Orquestra Sinfônica de Brasília, da sua imponência, da sua riqueza, do seu brado retumbante... Poderia falar do passeio, do bom serviço que os organizadores prestaram a essas crianças, e repetir outras balelas do nosso telejornalismo. Mas não vou comentar nada disso, vou comentar simplesmente uma coisa que uns amigos me contaram.

Disseram-me que passou na televisão, foi no DF-TV, ao meio-dia, num sol de rachar qualquer telhado. O que me chamou atenção nessa conversa, e que inclusive foi um ótimo motivo para boas gargalhadas, foi o comentário do seu Gilson, pai de um dos amigos que assisitia ao jornal nessa hora. Essa foi a sua pérola, disse ele que levar essas crianças para uma orquestra sinfônica:

- É a mesma coisa que colocar um jumento diante de um quadro da Monalisa...

Engraçado, seu Gilson, muito engraçado o seu comentário. Pessimista e sombrio, mas engraçado. Confesso que me valeu umas boas gargalhadas. Sua ironia revela um realismo grotesco, baixo, difícil de aceitar. É estranho: seu comentário, ao mesmo tempo que me faz rir, me assombra profundamente. Tem qualquer coisa de perverso. A piada tem essa coisa, não respeita os bons modos, a ética humanista, nem o politicamente correto. A piada é perversa seu Gilson, muito perversa. Uma piada, se bem colocada e bem contada, tem a capacidade de fazer Malcon X, ou qualquer negro, sorrir de uma anedota racista. Só as loiras não riem de piadinhas contra loiras - até porque elas não entendem - dizem as más línguas.

Eu não sei, seu Gilson, eu não sei de nada. Sei que achei engraçado seu comentário, muito engraçado, mas acho que faltou inteligência.

Pode parecer presunção minha, que seja! Mas continuo afirmando que faltou inteligência no seu comentário. Ora, seu Gilson, a arte não pede do sujeito que a contempla nada mais do que sensibilidade. Trocando em miúdos: a arte existe para ser sentida e não analisada. A análise de qualquer obra fica em segundo plano. Diante da obra de arte, o mais importante é sentir: é ter os olhos livres para a eterna novidade do mundo. Isso toda criança sabe, e ninguém precisa dizer isso a elas. Seus olhos estão mais livres do que o nosso. Os nossos, seu Gilson, já estão poluídos pela névoa da indiferença diante da vida. Aquilo que para nós não passam de nuvens, para elas são coelhos, bailarinas, girafas, uma jibóia comendo um elefante, um gato boiando no mar, tubarões batidos no liquidificador soltando pum.

Para as crianças, seu Gilson, o mundo inteiro é uma eterna novidade; enquanto que, para a maioria de nós, tudo não passa de uma mesmice aborrecedora, na maioria das vezes monótona, rotineira, banal.

Isso o senhor sabe, eu sei que sabe. Agora quero que o senhor lembre algo que o senhor esqueceu na hora do seu irônico comentário. Quero que o senhor se lembre que o senhor adora os Beatles. O senhor tem uma porção de disco dos Beatles. O senhor adora os Beatles desde a tenra mocidade. O senhor tem os seus cinqüenta e tantos anos e ainda ouve os Beatles como se tivesse quinze. Dezoito anos de idade. Como se estivesse escutando pela primeira vez. E uma leve melancolia te encharca a alma. Um não-sei-o-quê. Uma estranha nostalgia arrebata teu peito, todas as vezes que tu escutas os Beatles. E o que é mais sublime: o senhor não precisa entender nada, nadica de inglês, nenhuma sílaba sequer pra sentir tudo isso. É provável que no inglês tu não passes do "Verbo To Be", do "I love you", ou de algumas poucas expressões mais ou menos corriqueiras. Mas isso não importa. O importante é que tu sentes, tu sabes o quanto é bom escutar Strawberry Fields Forever. E isso te arrebata. E isso te comove profundamente. Erudição diante de um quadro ou de uma orquestra talvez seja bacana, pode render algum status, impressionar as pessoas ao redor, mas não é tudo. Aliás, eu diria que não significa nada diante do prazer que é simplesmente senti-la.

Portanto, seu Gilson, sob pena de perder a minha consideração e estima, não me venha mais com essa estória de dizer que essas crianças são como jumentos diante do quadro da Monalisa, nunca mais me repita isso, seu Gilson, nunca mais!

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 09/09/2008
Reeditado em 28/01/2009
Código do texto: T1170021