CHÊ GUEVARA DE PIJAMA. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
 
Hoje é quarta feira e eu gasto esse dia do jeito que quiser. Quarta feira é dia de alforria. Nos outros, eu me cobro uma regularidade muito próxima dos trabalhadores normais. Todo aposentado deveria impor-se essa mínima rotina que o fizesse caminhar todos os dias, (com ou sem vontade), estipular uma data certa na semana para  visitar um  amigo, fazer feira ou compras no supermercado, enfim, desempenhar a idéia de normalidade e defendê-la com certo ardor. 

 Pertencer é uma delas. Precisa-se pertencer a uma causa, a um grupo social, a um mínimo mundo mais amplo do que o círculo familiar, e que esse mínimo mundo  nos tome por empréstimo como se toma um sapato velho, e  nos devolva  em meia sola para o de onde viemos. Isso se chama sentido e direção. Há direções mais altas e mais sublimes,  mas nem mesmo essas nos isentam da necessidade das  alegrias brevíssimas.  Que de carne  ainda somos feitos.

  Mas há resoluções que só dependem de nós. Compartimentar os meses, as semanas, os dias,  é uma forma de evitar que a vida não se pareça com um único dia comprido. Eu, por exemplo, detesto ir à academia e vou. Todos os dias, com exceção das quartas e dos finais de semana, imponho-me o dever de ir. E mesmo quando  estou apenas indo, já tenho a sensação de estar mais sendo.
 
Estar mais sendo é um jeito de boa humanidade, um jeito de exercer clemência,   paixão e benolência para consigo mesmo. E assim elucida-se o destino que, a essa altura da vida nos parece tão compulsório. Elucida-se o destino e oferece-se à ele as incertezas próprias da vida. As incertezas que acompanham as coisas certas tais como nascer, viver e enfim, morrer.
 
Será que você me entende?
  
Se você já é aposentado como eu, experimente entender-me, impondo-se a rotina de um mouro preguiçoso que acorda em horários certos,  toma banho, veste a roupa apropriada, e vai à luta, só pelo dever de matar o dia comprido antes que ele lhe mate.

  Penso que impor deveres de casa, é um jeito bom de se gastar o tempo que nos falta - a todos - para vestir o pijama de madeira.  Um jeito tão sagrado, que ninguém, nem mesmo seu filho, ousará dizer à você: “hoje você pode fazer tal coisa para mim?” 

Não, você não pode. Não pode, porque tem as suas próprias coisas para fazer. Tão chic isso. Eu fico toda iluminada quando alguém me diz: “ nossa, como você é ocupada.” Sou mesmo. Sigo uma agenda invisível, tenho um chefe exigente e cobro-me um ritmo de trabalho muito próximo daquele que  imprimia, quando estava na ativa. Que na ativa, ainda estou.
 
Percebo também a felicidade das minhas filhas tendo uma mãe ocupada: “minha mãe tem mais de 700 amigos no Orkut,  é escritora, é atleta, é pregadora,  é uma mulher muuuuuito ocupada" – elas dizem, com certo orgulho. 

E alívio. Quem vai querer a sina de uma mãe que dependa do oxigênio filial para respirar em largos haustos a pequena vida que recebeu de Deus? Não! Cada um deve viver no contorno dos seus dias, e no entorno das suas próprias paixões. Com essas  se constrói uma vida de viver.
 
Mas eu, eu que nem queria falar só disso, me distraí. Seria só um preâmbulo, esse negócio de dizer que quarta feira é meu dia de folga. E o preâmbulo ficou sendo a alma do texto. Com um agravante: bem aqui no meio dessa frase me vem o sentimento de que hoje, exatamente hoje, um homem que está desempregado há muito tempo,  irá ler este texto. E sentirá inveja dos aposentados. 

Ei, você! Quero falar agora com você, desempregado. Quero lhe oferecer um jeito de empregar-se sem patrão. E sem salário: não vou lhe enganar, não. 

 Minha fala abordará duas situações: o desempregado número 01 e o desempregado número 02.
 
 O desempregado  número 01 não tira o pijama do corpo e nem o chinelo do pé. Faz a barba raramente; a barba é sua forma de protesto. Fica irritado com o canto de um sabiá. E se de noite a coruja pia, ele dorme durante o dia. O tubo de imagem da televisão, a madrugada gastou: a imagem demora para aparecer na tela e essa demora é um jeito  de reclamar  do excesso de trabalho noturno que você lhe impõe.  

Trocando a noite pelo dia,  você acaba acordando ao meio dia. Ver um homem de pijama, ao meio do dia,  na cozinha de casa,   é uma visão dantesca que exige dos demais membros da família o mesmo cuidado que se teria com um moribundo sadio. Enterrar não se pode, não morreu. Viver, não se vive, o sujeito desistiu. Esse é o aposentado número 01.
 
 O aposentado número 02 cuida da casa e dos filhos, enquanto a mulher trabalha, e o emprego não acontece.  Dispensou a empregada mensal e aderiu ao sistema de diarista. Quando os filhos voltam da escola, sentem lá da esquina, o cheiro bom de feijão recém temperado.
 
Eu acho melhor um desempregado cheirando a feijão, que mata a fome da família, do que um desempregado cheirando Che Guevara aposentado. Mas isso não significa que concordo com aqueles que disseram que Chê tinha cheiro de bode velho. Até escrevi sobre isso na categoria “Artigos”, por ocasião da comemoração do aniversário de sua morte. Foi o meu artigo mais lido.
 
Pois nesse artigo eu fiz um exercício de verificação, que quero compartilhar com você: cada pessoa entende o que lê, da forma como o seu coração pede. Alguns pediam que eu amasse Tchê e então entendiam que eu o amava. E comentavam: “salve Tchê!” E eu respondia : “Salve Tchê”. Outros, pretendiam que eu execrasse Tchê, e para acalmar o exaltado, eu sempre me socorria nas palavras do próprio:  "Hay que endurecer pero sin pierder la ternura.” Esse  esquecia-se da ternura e ficava com a parte dura. E eu dizia, que sim, que a pedra é dura.
 
Sacrificar a verdade que construimos é sempre uma grande loucura. Seguimos, então, sendo loucos. Hoje serei louca da maneira mais trivial possível: vou fazer pão integral e abastecer o meu freezer com o pão congelado de cada quarta feira.  Depois, vou descer a Rua Peabiru, que é a principal rua de comércio da minha cidade, e abençoar as lojas que abriram. Abençoar de uma forma prática: gastando um pouquinho. E depois passarei pelo banco. O banco que abriga minhas parcas finanças. 

O banco bem limpinho de uma instituição financeira pode ter cheiro de pinho sol ou pinho lua.
 
 Outro dia, eu me sentei no banco de um banco, e tive que levantar correndo, mas  já era tarde: fiquei  com um cheiro forte de urina, do qual demorei dois dias para me livrar. Coisas que a água não tira, porque impregna mais o nariz do que o corpo. Coisas que um banco não ensina de como se  livrar.  E esse banco era o Bradesco. 

Mas era dia do pagamento de aposentados. E o último aposentado que sentou ali, antes que eu me sentasse,  era Chê de pijama, com um gorro na cabeça, uma grande  barba branca, e uma imensa cruz no peito. 

Foi a compreensão da cruz quem me libertou do cheiro acre de urina e me transportou para o bom perfume de Cristo. Mas naquele banco só me sento, depois de cheirar. Como um cachorro cheira o mundo.