PERDOEM-ME PELA BAGUNÇA, ESTOU EM OBRAS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
 
Ah, as fases pelas quais passamos, e que nos fazem mudar, até que o ciclo se feche, e nós voltamos. A cada dia, olhamo-nos ao espelho e perguntamos: “essa enfim sou eu?” Não, ainda falta.
 
Eu bem poderia escrever na terceira pessoa do plural, ou recorrer ao expediente de narrar as  histórias de uma terceira pessoa. Mas o que se faria com a primeira? O “ele” ou “ela” poderia salvar-me da identificação do mundo,  mas não me salvaria de mim mesma. “Essa sou eu” – eu me diria. E se escolhesse essa existência impessoal, sem a grife de Deus,   mais os meus passos se tornariam excessivamente cansados.
 
Não! Prefiro dizer: aqui estou! Sou um ser com uma placa ao pescoço, pedindo perdão pela bagunça da obra que ainda não ficou pronta: “Desculpem-me, todos vocês, estou em obras. Para o bem da humanidade. Para o bem de todos.”
 
Não sei dizer, exatamente, quando fui me tornando assim: econômica em gastar meu tempo naquilo de que não gosto. Prefiro gastá-lo só com aquilo de que gosto muito. E essa preferência, às vezes, se revela em impaciência. Se não me agrada a maneira como o tempo está me esvaindo pelo vão dos dedos, se sou constrangida a participar de um acontecimento, fico aflita e impaciente,  até que, por absoluta incapacidade de esconder o que não consigo mais disfarçar,  vou-me embora, sem esperar que se me apresente um motivo para a saida estratégica.
 
Minhas saidas nunca são estratégicas, são sempre febricitantes. Apaixonadas. Simplesmente,  levanto-me e vou. Assim é com festas, assim é com cultos religiosos. O caminho da festa é sempre o mesmo: começa apoteótico e termina tão triste! O caminhos dos cultos, às vezes, vão por igual sentido:  começam com a Palavra de Deus e terminam com a palavra do homem. Eu não aguento.
 
 E se passo demasiadamente dessa minúscula e obliterada capacidade de aguentar,  chego em casa, tiro o uniforme, desabo  e choro. Choro tão sentido que me parece estar chorando aquele mesmo único choro, daquela mesma única noite.
 
E devo mesmo chorar, porque se retivesse o choro, demoraria mais para me refazer da perda dos o segundos que se extraviaram, dos minutos que se evaporaram, das horas que se perderam, no funil do nada. E que não voltam mais.
 
Se você pensa que fiquei assim quando descobri que poderia não ter mais (tanto) tempo para gastar comigo, engana-se. Fiquei assim porque tenho tempo para gastar comigo,  e gastá-lo comigo significa gastá-lo com Deus, e não quero gastá-lo com ninguém mais além de Deus. Sem esquecer que Deus  também vem embalado no outro. Esse outro, que embala Deus, é o outro cuja companhia eu  quero.
 
 E desde que decidi que o meu querer é o mais importante querer do mundo, - porque é o querer de Deus para a minha vida -  parece-me que tenho sido imanada pelo telefone, pela campainha, pelo  rádio amador, pelo celular, por todos os meios que a moderna comunicação dispõe para nos oferecer – por exemplo – mais um cartão de crédito.
 
 Eu que me escondo tão bem do mundo dos vivos, às vezes me distraio feio, e quando a voz do lado de lá pergunta: ‘é Ana Maria?” eu respondo: “é ela.” Pronto, lasquei-me. Estou à mercê de um fantasma delicado e firme, que me oferece livros, revistas, cartões, e candidatos às próximas eleições, com a convicção de quem está me fazendo um grandíssimo favor.   
 
Houve uma época, - olha aí as fases da vida – houve uma época em que eu não me permitia faltar a nenhum acontecimento social nesta minha pequena orbe. Parecia-me que a vida era feita de ânsias eternas. E que todas elas passavam pelos convites que recebíamos, e que não poderíamos recusar, sem alimentar o sentimento de des-pertencer. Que alimentava  o medo de não ser convidada para o próximo evento. Todos eles questão de vida ou morte.
 
Ivo então, - grande Ivo-  observando que a minha ansiedade nunca se aplacava, e que era sinônimo dessa vocação para o infinito, chamou um desenhista e pediu a ele que escrevesse no paredão que há nos fundos do hospital – em frente da nossa casa – o versículo 7 do capítulo 5 de I Pedro: “Lançando sobre Ele toda vossa ansiedade porque Ele tem cuidado de vós.”
 
 Todos os dias, logo pela manhã, eu abria a porta da varanda de casa, aspirava a tepidez do sol, o frescor do ar, a placidez de um dia solonolento, e comia aquela Palavra. Em jejum ainda, eu me alimentava com aquela Palavra. Que a Palavra de Deus é para ser comida com arroz e feijão (tão bom) ou com caviar (horrível). Ou no seco mesmo. E isso, eu começava a assimilar. Ah, as fases da vida...
 
 Por esse tempo, Ivo sentiu um forte chamado para o Evangelismo. Que se revelou de maneira singular:  contratou esse mesmo desenhista para que escrevesse na cidade inteira – em todos os muros, cujos proprietários permitissem- versículos bíblicos abençoando a terra. As  letras eram continuamente redesenhadas, sempre que a pintura azul se apresentava desbotada, pela ação da chuva e pelo desgaste do tempo.
 
A cidade inteira era uma Bíblia aberta, disponível a todos. Eu me iluminava, cada vez que passava diante de um muro branco, bordado em azul, porque sabia que a minha casa estava sendo instrumento para a tomada de Jericó.
 
Dois anos depois, quando a cidade ainda permanecia engalanada, com grande parte de seus muros brancos anunciando o Evangelho em bordadura azul, aprouve a Deus fazer-nos provar do Evangelho em cinza chumbo.
 
 Foi como manter apenas uma mínima escuta com o mundo dos vivos, nós que acabáramos de ser quase mortos.
 
  Ah, as fases da vida...
 
 Ivo perdeu o gosto pelos azuis e brancos dos muros que enfeitara para Deus. Entristeceu. Desistiu de bordaduras nos muros e foi evangelizar os presos nas cadeias e nos presídios. Que preso também ele se sentia, nesse perplexo mundo de Deus. 

Foi um lindo trabalho de reabilitar  vidas pelos caminhos do coração e do espírito. Que um dia, acabou, quando a tristeza amenizou. 

Mas o susto nunca passou. Ivo disfarça o susto dizendo - o que já disse a vocês, - que ele sempre diz: “ Eu não gosto disso. Eu gosto do meu arroz com feijão.”  
 
 Hoje Ivo come arroz com feijão, toda semana, todos os dias, de todos os meses, de todos os anos, no Rotary Club.
 
Esse, enfim é o Ivo?  Não, ainda falta!
 
Meu caminho se fez de maneira oblíquia: gravei os versículos no coração e desisti de ler bordaduras nos muros. Preferi sair por aí e por aqui,  bordando-me para inspirar as pessoas a se bordarem também. Há dias em que a agulha me fere toda. Mas se para isso fui chamada?!
 
 Essa, enfim é a Ana ?   Não, ainda falta!